Uma citação de Óscar Lopes [do seu "Álbum de Família" [prémio Vida Literária] edição Associação Portuguesa de Escritores, sob licença da editorial Caminho, Lisboa, 2001 que pode, em meu entender, ajudar a fazer luz sobre a "crise" do cinema português.
Cinema português marcado, em meu entender, por uma série de equívocos que incluem eo enorme equívoco da adopção por parte dos mídia e do "consumo" de uma terminologia "pós-cinematográfica" onde a designação de "ficção portuguesa" tende a sobrpor-se à designação clássica de 'Cinema'.
De facto, o que passa geralmente hoje por ficção nacional resume-se a uma proliferação de "historietas de faca e alguidar" mal filmadas, com "estórias" que parecem saídas directamente de "imaginações" tipo Corín Tellado ou Max du Veuzit, populares antepassadas das Barbaras Carttland ou das Danielle Steele de hoje, "estórias inenarráveis" protagonizadas por falsos actores «produzidos» estes [literalmente] em série, passadas na programação-horário "nobre" das televisões com o alibi de serem precisamente "coisas nacionais, «nossas».
A citação de Óscar Lope--que refiro no título e me proponho aqui trazer parece feita de propósitio para referir-se a este tipo de" objecto ficcional" mil vezes repetido com alterações de mera circunstância re-encaixadas "a martelo" em historietas inverosímeis--é a seguinte:
"Quando recebemos uma mensagem, geralmente pouca atenção prestamos ao código utilizado
nessa mensagem, porque em geral a sua decifração é automática, ou melhor, se automatizou. Mas se, à margem da leitura mais ou menos espontânea de um romance ou novela, conseguitrmos reflectir sobre as condições de enredom as condições de pssicologia, as condições de ambiente, as condições de valorização, positiva ou negativa, a que um romance ou novela obedecem, então, a nossa recepção da mensagem, já ciente de alguns dos cordelinhos invisíveis, de aslgumas das suas miolas de interesse, começa a tornar-se diferente."
Se, com efeito, a meu ver, em vez de "romance ou novela", lermos no texto que reproduzo, "tele-novela", perceberemos imediatamente onde termina a produção industrial e [não] começa a artística em matéria de ficção, nacional ou não.
E é, sempre em minha opinião, precisamente porque temos públicos "educados" ou melhor: treinados para não pensarem sempre que se trate da descodificação de mensagens televisivas sucessivamente repetidas que muitos autores de cinema tendem, entre nós, a fazer o trabalho de casa pelo público, caricaturando, no fundo, aquilo que Orson Wells fez, com dificilmente imitável qualidade, no seu clássico-dos clássicos "Citizen Kane": uma reflexão prática sobre a forma da própria narrativa.
É efectivamente isso o que muitos cineastas nacionais, a começar pelo "patriarca" Oliveira, fazem nos seus filmes substituindo-se à actividade autónoma do espectador, dispensado pelo "treino" televisivo regular de pensar [n]o que vê.
Em França, estas questão originou em tempos, nos "Cahiers" a "recuperação" para o campo do cinema sério, a partir de uma célebre e polémica dicotomia envolvendo o "cinema-indústria" norte-americano, por um lado e o cinema dito "de autor", de muitas obras constantes até aí da primeira daquelas "categorias".
De facto, a "dicotomia" era, como é hoje reconhecdo por muitos, muito mais aparente do que real. Muito do cinema-indústria de qualidade era, não apenas Cinema industrial como também, a seu modo, "de autor" na medida em que, mesmo considerando que no caso da indústria norte-americana, as formas de divisão do trabalho cinematográfico tendiam naturalmente a relativizar um pouco, ao menos potencialmente, o papel, central, por vezes, taumatúrgico do realizador, é sempre possível distinguir traços identitários na Obra dos grandes cineastas norte-americanos de Ford a Hawks, passando por William Wellmann passando por um realizador de que pessoalmente gosto muito: Anthony Mann.
Às vezes, tudo começava na escolha do elenco, havendo colaborações entre realizador e actor[es]que se tornaram só por si marcas identitárias: a de Ford e John Wayne, por exemplo ou a de Mann e Jimmy Stewart em "westerns" admiráveis, como "Winchester 73" ou o meu preferido "The Man From Laramie", um western injustamente esquecido sempre que se trata de referir os melhores de sempre no género.
Em Hawks era a camaraderie entre homens, a definição de poderosos universos androcêntricos senão mesmo dignamente androcratas, eram as histórias de amor entre eles um motivo que, em "Rio Bravo", um filme feito a partir de uma estória trabalhada curiosamente por uma mulher Leigh Brackett se cruza magistralmente com o do reafirmação da dignidade de um deles com o recurso à inestimável cumplicidade dos restantes. A "estória" de 'Dude'/'El Borrachón', um soberbo Dean Martin no apogeu da respectuiva carreira como actor dramático,
Na linha daquilo que o grande Ford faria de forma notabilíssima e hoje clássica em "The Man Who Shot Liberty Valance", Mann e Stewart focaram a sua colaboração na figura do homem que crente em valores que não a violência prefere argumentar a lutar, uma figura particularmente difícil de trabalhar no western, sendo este, como é sabido, a epopeia de um país onde a palavra e a acção surgem, demasiadas vezes, como entidades antagónicas quase ou mesmo abertamente inconciliáveis, preferindo a vox populi contrapor a "action" à "word", reservada esta para os "politicos", que neste contexto cosmovisional dual muito característico surgem muitas vezes como associados àquela que, para muitos americanos constitui uma verdadeira "four letter word": "politics".
De resto, a ajudar à relativização da dualidade em causa existem documentos perfeitamente esclarecedores como por exemplo, o depoimento de Howard Hawks, prestado a Andrew Sarris [Cf. "Entrevistas com directores de cine", edição "Novelas y Cuentos", Madrid,1972 onde Hawks se refere à montagem que ele afirma "odiar", acrescentando: "Quando me iniciei na profissão, os produtores receavam que eu fizesse filmes excessivamente curtos porque nunca lhes fazia chegar película suficiente para ser montada. E eu disse: «não quero que os senhores façam o filme na sala de montagem. quero ser eu a fazê-lo no set e e se não estiverem de acordo, tanto pior.
Não quero com isto dizer que a montagem não é um trabalho sério muito em especial se se filmou mal. Horroriza-me a montagem porque, quando vejo o meu trabalho uma segunda vez, dou por vezes comigo a dizer: «isto aqui está mal» e «ali também» e «mais ali e ali». É muito difícil separar as coisas, distinguir. O filme é achar o argumento certo, decidir o modo de contá-lo em cinema, decidir aquilo que se vai filmar e o que, pelo contrário, não se vai mostrar. Uma vez iniciada a rodagem, tudo se me torna muito claro: trabalham-se aqui e ali certos pormenores que valorizam o filme no seu todo."
É evidente a preocupação do realizador de fazer realmente o seu filme de princípio ao fim. Se não estamos perante um autor, que será que falta a quem assim concebe o trabalho do realizador para integrar legitimamente a "categoria" em causa?
Significativamente, Hawks responderá ainda assim a uma outra questão do entrevistador ["Trabalha sempre sobre guiões seus?"]
["Desde o princípio e em todos os meus filmes".]
"FIlmo", dirá ainda, "como se estivesse a fazer a montagem com a própria câmara".
Uma concepção de cinema e da narrativa, da arte de narrar que, seguramente lhe permitirá dizer, com autoridade e fundamento: "Tanto quanto posso ser eu mesmo a pronunciar-me sobre a minha obra, creio que há nela um ceta homogeneidade desde os primórdios até hoje.
Howard Hawks [ou Hitchcock que tinha com a montagem uma relação algo semelhante] não-autores?
Não por acaso, Hawks e Hitch são dois cineastas da "indústria" que os "Cahiers" "recuperaram" atribuindo-lhes um estatuto muito próximo do cinema "de autor.
No caso do realizador de "North by Northwest" eles são, com Chabrol e Truffaut mesmo determinantes para que Hitchcock se convertesse de um mero criador de filmes "policiais" e "de suspense", num cineasta "a sério", respeitadíssimo enquanto «autor» com uma identidade e um discurso--uma Obra---próprios.
Por tudo isto, me parece que, em vez de fórmulas ou domínios antagónicos, polarmente opostos entre si,, o cinema industrial--um certo bom cinema "induastrial", uma indústria estabilizada da produção de filmes e o génio individual, constituem modos de alguma forma e até certo ponto, complementares de expressão.
Pessoalmente, estou conviocto e já aqui o disse, pelo menos uma vez que um dos grandes problemas do Cinema em Portugal consiste precisamente naquilo de que fala Óscar Lopes e que a ficcção televisiva apenas pode agravar uma vez que está por natureza "vocacionada" para potenciar todo o problema.
Refiro-me concretamente à parte em que o autor de "Ler e Depois" discorre sobre a ausência de reflexão corrente sobre o dicurso enquanto objecto-em-si e veículo de sentido. nesse quadro, o realizador, que ainda por cima na ausência de uma indústria, provém, muitas vezes do meio escolar, de uma Escola de Cinema, tende a fazer ele, no próprio filme a reflexão em falta. De onde resulta que muitos dos filmes portugueses de hoje pouco mais são, muitas vezes, do que exercícios de forma e de reflexão sobre ela, desvalorizando-se muitas vezes a "estória-em-si" a matéria sobre a qual deveria ser moldada a própria forma.
Algo que John Huston outro cineasta, hoje-por-hoje mais ou menos pacificamnte aceite na Europa e até nos próprios Estados Unidos como um «autor» expressa na sua pópria entrevista concedida a Sarris deste modo verdadeiramente lapidar, ao depropor a sua própria definição de 'estilo': "[estilo] sdefine-se como a adaptação correcta da palavra à acção e desta à ideia" [ibid. op. cit.].
o
[Na imagem fotograma de "The Man From Laramie" dirigido por Anthony Mann com Jimm,y Stewart, Cathy O' Donnel, Donald Crispe Arthur Kennedy]
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