domingo, 4 de janeiro de 2009

"Um Grande Realizador E Um ENORME Actor"


Estive ontem a ver um documentário (razoável) de Peter Bogdanovitch sobre o grande John Ford.

Nele não se diz nada de propriamente muito original, funcionando, sobretudo, como um tributo inquestionavelmente comovido embora cinematograficamente muito limitado à memória do "homem que fazia westerns"--e que fez, de facto, alguns dos mais fabulosos e definitivos de que há memória.

Especialmente interessantes no documentário algumas passagens avulsas, designadamente uma em que, julgo que é Scorcese ou o próprio Bogdanovitch se refere a uma sequência de "The Searchers" (o filme de Ford, a meu ver) onde "entra" esse prodigioso intérprete dramático que foi Ward Bond.

Bond era um "supporting actor" absolutamente fabuloso. Dominava toda a paleta de moções e registos, do contido ao "explosivo" e aguentava sequências inteiras de filmes, levando-as literalmente... "às costas" até às estrelas às quais eram, então, "servidas de bandeja".

O seu truculento "reverendo", 'doublé' de capitão dos "Texas Rangers" em "The Searchers" é simplesmente genial.

A cena a que me refiro ocorre quase na abertura de "The Searchers" quando Bond/o reverendo-capitão, chega a casa da família que vai ser quase integralmente dizimada.

Ford (para quem o Cinema era sobretudo uma circunstância estrutural e estruturadamente dinâmica, sanguínea e seminal, embora sempre, de modo aparentemente paradoxal, drasticamente mantida sob o seu severíssimo controlo pessoal) encena a sequência dando aos actores liberdade para se moverem mais ou menos "livremente" no 'set' ("setting them off and then letting them do their thing according to the spirit of the script", por assim dizer).

A sequência abre de um modo (a meu ver) um tudo-nada "teatral" ("aquilo" é à partida um palco, cuja cortina acabou naquele instante de ser erguida) mas, de repente e em larguíssima medida por acção de um magistralmente 'vulcânico' e empolgante Bond no qual toda a cena fica, de resto, de imediato, "ancorada" ("around whom the whole sequence is instantly rooted and starts pivoting"), tudo "aquilo" começa a girar, a "sair" espontaneamente da "teatralicidade" original, e o Cinema começa logo ali a fazer-se, debaixo dos nossos olhos literalmente arrebatados e muito justamente maravilhados.

Bond é, ali, claramente o "agente no terreno" do próprio realizador.

Ele e Wayne, por exemplo (ou Victor MacLaglen ou esse outro "pequeno génio discreto" que foi o soberbo Hank Warden o "Mose" do filme, intérpretes que Ford levou naturalmente de filme para filme) são actores "fordianos" por excelência (como Bogart, por exemplo, era "naturalmente" "hustoniano" e também um pouco "hawksiano"...), funcionando no 'set' como extensões naturais da própria personalidade, da própria específica sensibilidade, da própria... "inteligência global da realidade" próprios do realizador.

Tudo "aquilo" se articula espontaneamente, tudo "aquilo" respira em uníssono, sem uma falha reconhecível, sem um erro.

Percebe-se distintamente ali por que (felicíssima!) razão, Ford "desconfiava" instintivamente dos escritores e os mantinha sob estrita vigilância, controlo e até, ao que parece, alguma reconhecível tirania(1): porque com o seu fabuloso instinto para a "composição" pictórica, para a plasticidade da relação com o écrã, e actores como Wayne, Warden, MacLaglen ou Bond, as palavras podem efectivamente tornar-se obstáculos à explosão seminal de todos esses 'soberbamente funcionais' egos cujo apelo vai claramente todo no sentido de se diluirem em última instância na própria acção convetendo-se naturalmente nela com um saber feito de intuição, é óbvio, mas, de igual modo, de um savoir faire onde a "ponte" entre a pura técnica e a Arte permanece sempre sabiamente meio oculta--mas (e aí residirá em grande parte o "segredo" do génio de Ford e do próprio Bond num plano obviamente distinto) nunca completamente... ´
Falando, agora, especificamente de Ford, resulta particularmente curioso (e intelectual e criticamente estimulante!) "comparar" um homem como Ford a outro, muito distante no espaço e na visão global quer do Cinema, quer da própria realidade--que este último mais do que reflectir, refracta) como o 'nosso' Oliveira: aproximando o Cinema que um e outro fazem, percebe-se melhor, imagino eu, a irredubilidade última ("ultimativa", "ultimate") que existe entre o Cinema ou entre uma... cinematicidade (teoricamente, ao menos) especificamente europeia (vou ser admitidamente primário no que vou dizer: essencialmente virada, em última análise, sempre para a reflexão e para a reintegração contínua dessa componente reflexional, de um modo ou de outro, no 'tecido' do próprio filme, sendo que ela é, muitas vezes, também, uma reflexão "em situação" sobre o próprio Cinema enquanto tal) e uma outra americana: norte-americana (sendo outra vez primário, eu diria que virada esta última para os aspectos in/essencialmente funcionaifeio vício da "categoriação" absoluta, dogmática, eu diria que existem, que estão objectivamente criadas cultu(r)almente, paradigmaticidades específicas (alimentadas por públicos igualmente distintas e possivelmente também eles específicos) que, todavia, a meu ver, em lugar de se oporem, como pretendem alguns, entre si, se completam e de algum modo tético se inter-explicitam e ajudam a inter-definir.


(1) Há uma "estória" que alguns contam sobre a relação de Ford com os "script-writers", designadamente com o escritor Nunnally Johnson.
Reconto de cor: após muito trabalho, Johnson terá conseguido fazer-se receber por Ford a fim de lhe ler algumas páginas de um "script" que lhe coubera redigir. Ford que estava, ao que parece num iate, recebeu-o, terá em seguida pegado no "script", ter-lhe-á dado uma vista breve de olhos, tendo-e depois negligentemente lançado pela escotilha para o mar, dizendo: "Pronto! Já li. Fico à espera que me traga as correcções."

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