"Sempre" me apresentei (a mim próprio, pelo menos...) como, entre outras coisas igualmente possíveis, "um homem que lê o 'Público'".
Não "um leitor do 'Público'. Não sou "um leitor do 'Público': sou, repito, diferentemente, apenas um homem que o lê.
São coisas substancialmente diferentes.
Leio-o, desde logo (sou "forçado" a lê-lo...) pela simples razão de que 'não há outro jornal' em Portugal actualmente.
O "Correio da Manha" é leitura de 'pied noir' ressentido (e eu nem sequer estive alguma vez em África, tirando, claro, aquela em que fui a Ceuta comprar um blusão azul que, de resto, poucas vezes vesti porque resultou ser uma coisa absolutamente abominável...); o "Diário de Notícias" é sempre demasiado "o jornal da situação" independentemente de qual ela seja e o resto é im/puro lixo com "sabores" diferentes, do "Expresso" (apesar de ser o "órgão oficial" da maior cidade do país, a Néscia Subúrbia cuja pirosa vaidade o jornal sabiamente corteja) ao repelente "24 Horas" (cujo único mérito é lá não escrever o "nosso" Harold Robbins com batatas e grelos, Não-sei-quantos Sousa Tavares).
Mas não leio, por exemplo, o 'Público' "de" Ester Mucznic (uma folha de papel intelectualmente execrável que correspondentemente abomino!) ou o "de" José Miguel Júdice--e, já agora, "de" um insuportavelmente pomposo ex-ministro do actual governo cujo nome não me ocorre--que, aliás, não desmerecem, pelas mais diversas razões (todas as piores!) minimamente dos anterior.
Não leio, de resto, diversos "outros 'Públicos'" de de que, de momento, todavia, não me lembro.
De que tento não me lembrar.
Ou de que não faço o mínimo real esforço para me lembrar.
Estarão, de qualquer modo, do meu ponto de vista pessoal, tal como os que atrás refiro, bem melhor esquecidos.
Ah! Também não leio "o de" Pulido Valente (ou será--não consigo resistir ao(s) óbvios trocadilho(s), desculpem lá!...-- "Poluído Da Mente", "Poluído e Demente", "Poluído da Lente"?--Aquilo é "Eça com feijão branco" a mais para o meu des/gosto, sinceramente.
Pose e Freud em excesso para um 'estômago crítico' delicado como o meu).
Enfim...
Já (às vezes--porque, repito, as alternativas inexistem por completo, hoje-por-hoje, entre nós)leio, por exemplo, "o de" São José Lopes, o de Villaverde Cabral e o Rui Tavares.
Pelo menos, não me envergonho de ser... "apanhado" (quanto mais não seja, por mim próprio...) a lê-los--o que, "all things considered"...) já é seguramente alguma coisa...
No "de" Rui Tavares, li, recentemente, um texto sobre a "estrutura" ou a "essência" da Liberdade.
E gostei, confesso. Nada do que lá se diz é especialmente original ou profundo.
Tem, todavia, uma qualidade inestimável: é verdade!
A liberdade é uma 'coisa concreta': só existe liberdade concreta. "Para comer", como dizia o Gracq da literatura: "C'est quelque chose à l 'estomac".
Num duplo sentido, aliás: é no estômago que se mede a liberdade das pessoas e das sociedades e (recorrendo a um aforismo, sem dúvida medíocre, mas, pronto, de momento foi o que se pôde arranjar...): "A liberdade, meus senhores, são bifes!"
É ter "qualquer coisa no estômago".
Dito assim "soa mal", claro.
Parece mais uma coisa "pensada" por um fulano como o Dr. Mário Soares dos seus 'bons tempos' ou de alguém "do género": Albarran, José Sócrates por aí.
Mas, como dizia o meu saudoso Tio "Jack", o que conta realmente é o princípio.
II
E agora vou falar "a sério": eu sempre disse que a liberdade é (tem forçosamente de ser, antes e acima de tudo o mais, uma "teoria da realidade".
É mesmo, a meu ver, o modo de representar mais até do que política, cultu(r)almente, a liberdade que separa a "Tradição" da "Pós-Modernicidade", as societações "verticais" ou "verticalizadas" das "horizontais".
Queiramo-lo ou não (leia-se: saibamos ou não percebê-lo) no quer chamo as "societações tradicionais" em geral, a liberdade tendeu sempre a ser, de um modo ou de outro, uma teorização contínua, continuada, sobre a realidade.
Quando não o foi de facto (e não o foi muuuuuitas vezes!) foi-o nas reflexões das elites intelectuais--e inteleccionais o que não é precisamente a mesma coisa mas enfim julgo que se percebe o que eu quero dizer.
Quando se forma o Estado nação (a que pessoalmente sigo preferindo, em todas as circunstâncias, chamar o "Estado consciência") moderno, este assimila, na sua estrutura teórica e institucional, esse modo consistente e tendencialmente orgânico de representar a liberdade.
Conferindo-lhe um fundamento "de episteme" que a pós-modernidade desfez por completo.
A "autoridade", por exemplo (que é, no limite, uma modalidade ou uma mutação da própria liberdade: é-o, seguramente, de um ponto de vista genérico e funcional ou funcionante) possui, no "ancien régime" um fundamento e uma substância teóricos perfeitamente reconhecíveis.
A ideia é: o Conhecimento é um valor em si mesmo. Mais do que uma utilicidade onde imediata ou mesmo apenas mediatamente se esgote, é um valor em si mesmo.
Algo que não precisa de ser demonstrado: a sociedade asenta na base de uma confiança representacional implícita onde as coisas projectam a sua sombra (ou... a sua "luz") representacional de modo perfeitamente suficiente.
Um "doutor" não tem necessariamente de 'saber muito' para seguir sendo "doutor".
Ser "doutor" (ou "arquitecto" ou "engenheiro") é um modo de estar na realidade (social, cultu(r)al) que o ancien régime neo-burguês herdou praticamente intacto da anterior sociedade de títulos.
Entre nós, o salazarismo, a "Academia" salazarista onde eu me formei, por exemplo, conferiu "títulos"... "laicos" desse tipo fora de um qualquer quadro de utilicidade objectual que só começaria a ser equacionado (e mesmo assim só muito embrionária e muito primariamente, de resto) no 'último fascismo', o de Marcello Caetano... e Veiga Simão.
Todo o sistema de fases e diuturnidades, por exemplo, no Ensino, assenta nesse princípio básico segundo o qual a "autoridade" (estritamente técnica mas de um modo mais amplo, social) tem um fundamento específico, objectivo (de facto, subjectivo mas objectivado numa teoria global de rituais e respectivas representações objectivizantes ou objectivadoras).
Em tudo equivalente à dos filhos na casa paterna que era uma espécie de fractal microcósmico da Academia e de tantas outras "circunstâncias" ou "ciorcunstanciações" cultu(r)ais da época.
"Malgré Rousseau" (ou Montessori, à época, entre nós, uma intelectual ainda muito... subversiva--que, de resto, a seu modo, efectrivamente, foi...--e para muitos, suspeita...) criança nasce sem direitos. É amada, claro (quando o é mas enfim, pronto, essa é outra questão...) mas não tem propriamente "direitos", num sentido muito "político" ou "para-político" específico: adquire-os.
Melhor: vão-lhe sendo conferidos.
Como?
À medida que vai atingindo o (ou se vai aproximando do), vai chegando ao; à medida que vai subindo até ao Conhecimento. A "autoridade" (lá está!) tem, pois, um fundamento, uma substância perfeitamente reconhecíveis: o Conhecimento.
Mais precisamente: o reconhecimento soccial (e político!) não da respectiva propriedade porque o Conhecimento no 'ancien régime' (e para ele) não é nunca exactamente uma "propriedade" (o que implica sempre, no limite, um direito em si...) mas muito mais um "empréstimo"excepto, claro, para as grandes elites económicas e financeiras--e políticas!--do 'regime' com as quais, obviamente, a questão do "direito aos direitos" se põe sempre de modo estruturalmente distinto do do vulgo...).
Para o 'ancien régime' o Conhecimento pré-existe ao indivíduo, ao Cidadão. Não se cria e constrói ou "inventa": acha-se, encontra-se, está "lá fora", à espera...
É... "revelado".
O indivíduo apenas ascende a ele.
Há é, como disse, modos "rituais" de reconhecer simbolicamente essa "ascensão".
O meu pai, por exemplo, apontava como metas ou "esquinas" e "ângulos" de um percurso cerimonial em relação à "autioridade", à "liberdade" e à "igualdade" (ao contrário do que muitas vezes se pensa--e até do que ele próprio pensava!--o 'ancien régime' possuía formas muito próprias de representar a "democracia" que, ainda por cima, possuíam "substância teorética" própria, específica, particular...) : a "4ª classe", o "5º" e o "7º anos" do antigo liceu, a enttrada na Universidade, a licenciatura que era o "grau" final dessa "iniciação".
Depois da 4ª classe, tive "direito" à bicicleta; Depois do "5º ano" a uma chave de casa emprestada e a voltar para casa às 10 da noite; depois, do "7º" a voltar para casa às 2 (ia estudar para cafés) e, por fim, quando me licenciei, a ter acesso a algumas realidades "de adulto" como ver os "papéis da casa" e por aí fora...
Depois, quando comecei a leccionar, fui sendo sucessivamente "professor provisório", "efectivo", da "primeira fase", da "segunda", com uma, duas, três "diuturnidades" e por aí fora: fui tendo assento em cada vez mais conselhos escolares e a ser chamado "sr. dr." pelos directores das escolas, enfim...
Ora, a meu ver, o que (des) faz a pós-modernidade é precisamente esta necessidade implícita, "ingrained", de fundamentar e substanciar simbológica , cultu(r)al (e institucionalmente) a "liberdade" e/ou "autoridade".
De substanciar e fundamentar pontualmente a própria democracia.
A ideia de Democracia.
Hoje, com efeito, a "liberdade" e a "autoridade" assim como a própria "democracia" genericamente considerada muito mais do que um modo de teorizar consistente e organicamente sobre a realidade configuram uma metafísica sem verdadeiro contacto integrante, teoricamente orgânico, com a realidade.
Com o funcionamento possível, teoreticamente deduzido, desta.
As pessoas nascem com "direitos" cuja magnitude epistemológica torna objectivamente impraticáveis. A socialidade, a cidadania, não são mais uma prática que conduz a uma fixação teórica funcional limite mas um modelo completamente abstracto não da real mas de si próprio condenado à estéril absoluta "perfeição".
A nossa "autoridade" pós-moderna não se corrige nunca, em caso algum, par rapport à sua capacidade de relacionar-se com o fundamento específico da realidade mas sempre tendo presente a aspiração de corigir-se par rapport a si mesma, como (im) pura metafísica.
Se pretendêssemos "descrever epistemologicamente" os "nossos" tempos pós-modernos, essa seria, possivelmente, a melhor porque mais rigorosa e exacta maneira de fazê-lo...
Em relação à "liberdade" e/ou à "autoridade" (a todos os níveis e, no fundo, em todos os planos) como em relação a qualquer ponto ou circunstância do nosso "leque representacional" cultu(r)al mais estável e, sobretudo, característico.
[Na imagem: Rosaleen Linehan como "Winnie" em "Happy Days" de Beckett]
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