sábado, 10 de janeiro de 2009

Bens públicos, disfuncionalidades privadas

Há muito que venho argumentando (como posso e onde posso) em defesa da ideia que a mim me parece básica, primária mesmo (e em vários sentidos) de que a repotenciação pós-moderna da divisão da sociedade em classes, a sua actualização ou "aggiornamento" funcionais, sem deixar de ser in/essencialmente de natureza económica, assenta hoje, mais do que nunca, naquilo que, seguindo uma terminologia caracteristicamente marxista, poderíamos chamar a "propriedade dos meios de produção social de conhecimento e/ou informação".
Nego, também, de acordo com a observação que faço do modo como a propriedade do saber está hoje (muito desigualmente) distribuída no mundo que seja possível que, no contexto do chamado "mundo ocidental", haja hoje verdadeiras "sociedades do conhecimento".
Não podem estas existir, como é óbvio, num paradigma de sociedade (ou de "societação", na minha semântica pessoal...) em cujo seio aquele mesmo conhecimento (ou aquela "informação") se acham "socializados"--"democratizados", grafam alguns mais ambiciosos...-- de um modo que, porém, em todos os aspectos, social, política e até filosoficamente injusto na medida em que deixa, por um lado, à generalidade da sociedade a propriedade dos produtos inertes e, num certo sentido, passivos, completamente inorgânicos da 're/produção social de conhecimento' enquanto que reserva, por outro, a uma elite económico-financeira e política a do acesso directo aos dispositivos de transformação activa e efectiva da realidade em "valor"--através da conversão... "transpolítica" dos meios de acesso directo ao real em propriedade, tão estrita quanto sobretudo estreitamente, privada.

Processo no contexto do qual, vá-se dizendo, desempenha um papel particularmente relevante (pelas piores razões, porém) como também digo noutro lugar, a escola "pública" neo-burguesa, i.e. àquela que na prática se instituíu nas sociedades "ocidentais" a partir do 'instante da História' em que a burguesia, ocupada substantivamente a propriedade que havia sido da aristocracia deposta, determinou, por isso, restaurar, no in/essencial, anteriores paradigmas de "diálogo" ou de "dialogação" (anti) social, desfazendo-se, de passo, da companhia das classes populares (desde logo, da do proletariado, sobretudo urbano das grandes cidades) que até aí havia colaborado directamente com ela na condução do processo revolucionário de recomposição e correcção do próprio curso da História--em França mas não só.

O processo a que me refiro de apropriação (ou de "enclosing") privado(s) da propriedade social vem já de trás, como é evidente, mas sofreu, como também é sabido, um verdadeiro 'boost', civilizacionalmente decisivo, com a Revolução Industrial na medida em que a propriedade social a ser agora "enclosed", passou a ser, no contexto do processo global de re/produção contínua de Capital, o próprio saber com que esse Capital "é feito" ou de que ele é secundariamente "fabricado".

O que eu digo é que o grande (embora humanistica e politicamente discutível...) "mérito" do capitalismo moderno (e pós-moderno!) foi o de ter convertido, a prazo, aquele que era um paradigma estruturalmente desigual e injusto de organização, económica, social, política e até civilizacional, numa espécie de modelo secundariamente afirmativo de "societação" levando a que um sistema de exploração e administração económico-financeira e até super-estruturalmente civilizacional que se "expressava politicamente" de forma electiva no autoritarismo--no fascismo com certeza (como o demonstra o estudo cuidado da génese teórica dos regimes políticos de "capitalismo total" surgidos na Europa nos anos vinte do século passado)--a poder evoluir tranquilamente para a "democracia".

Para a democracia diz o próprio "sistema" através dos seus porta-vozes e serviços de "relações públicas" institucionais e teóricos; para a "demomorfia instrumental" que hoje, estr(e)itamente associada a uma sociedade (cada vez mais vagamente e mais dificilmente, de resto!) "de consumo" nas sociedades persistentemente periféricas como a nossa, passa geralmente por tal, digo eu...

Dou dois exemplos:

O primeiro vem de um texto de Vital Moreira divulgado no jornal "Público" (onde escreve o conhecido constitucionalista, agora que descobriu que tudo o que antes defendera ou dissera defender estava errado) e que ele intitulou (como escassa originalidade, aliás) "Bens públicos, abusos privados".

Aí se dedica ele especificamente a invectivar com particular energia arguentativa e verbal os campistas e/ou auto-caravanistas que por toda a costa portuguesa causam estragos, sem dúvida, significativos na paisagem.

Ora, o que eu digo é: que esses, como tantos outros, nos parques, jardins, etc. de todo o País causam estragos consideráveis, estragos alguns deles seguramente de muito dificilmente reparação, não está, como é óbvio, em discussão: causam mesmo, ponto final.

Agora, o que sim está em discussão é se os argumentos e os fundamentos aduzidos por Vital Moreira para invectivar os usos microcosmicamente anti-sociais do património público paisagístico não deviam , por maioria de razão, ser tornados extensivos a todos quantos esses mesmas danos e estragos causam a uma dimensão não já micro- mas macro-cósmica na propriedade social e política genérica, total, enquanto tal.

Ou seja: um homem, muitos homens, homens e mulheres, comprometem a estabilidade de uma falésia e são "um exemplo de degradação e depredação dos bens públicos de uso colectivo em Portugal", como escreve V. Moreira; mas um núcleo, uma mancheia, um número substantivamente menor mas incomparavelmente mais perigoso de indivíduos erigido em poder político efectivo subscreve um contrato ruinoso para a construção, por um grande grupo privado de construção civil, de uma ponte, de um aeroporto, de uma qualquer "cidade judiciária" (que nunca chega, todavia, a ver a luz do dia) ou de um "TGV" (um TGV que, de resto, muito pouca coisa permite distinguir de uma espécie de réplica móvel do "Vaticano" re/construído numa selva qualquer, como aquela em que o ditador marfinense Houphouët Boigny decidiu erigir no seu neo-colonizado e miserável país uma fotocópia da Basílica de S. Pedro de Roma); um núcleo, pois, dizia, de indivíduos com poder subscreve o tal contrato; a "cidade judiciária" não se faz e é preciso "indemnizar" chorudamente o não-construtor das "coisa" com uns valentes milhões saídos da propriedade pública (que, no caso dos caravanistas era apenas, como diz Moreira, de uso público); ou que, no caso da ponte se faz mesmo com o argumento de que vai permitir resolver os estrangulamentos de uma outra situada um pouco mais abaixo mas não resolve rigorosamente coisa alguma, limitando-se a ser, isso seguramente, um fabulososo negócio de construção civil; tudo isso (não?) tem lugar e, ainda assim... nada acontece a quem, por incompetência ou por outra coisa qualquer, dilapidou património público e geriu de forma gritantemente ruinosa a administração da propriedade não menos pública.

E não se trata aqui, entendamo-nos, nem de desculpabilizar o uso anti-social dos bens colectivos como o litoral do País nem de fazer qualquer tipo de demagogia: eu há muito que venho defendendo que àquilo a que chamamos vulgarmente Democracia em Portugal faltam dispositivos verdadeiramente essenciais de controlo realmente democrático e de responsabilização política em tempo tão real quanto possível dos agentes do poder representativo.
E esse é que é o grande problema, a origem de todos os problemas avulsos, aquilo que é essencial considerar antes de começarmos a imprecar contra estes que mais não configuram, pois, do que meras consequências.

Defendi (e continuo tão veemente quanto convictamente a defender!) a criação de uma "Mesa" ou "Tribunal de Fiscalização e Convalidação Política", concebido à imagem do Tribunal Constitucional ou do de Contas, onde (volto a dizer) os programas dos agentes políticos, individuais ou colectivos, concorrentes a eleições, tivessem obrigatoriamente de ser depositados assim como um plano tecnicamente argumentado e sustentado dos modos concretos de pô-lo em execução na prática, de modo prévio relativamente ao acto ou actos eleitorais respectivos.

Preconizo a introdução deste dispositivo, como também, já por diversas vezes defendi, a fim de evitar que algo que se situa no próprio núcleo activo do específico democrático--i.e. a cedência circunscritamente instrumental do exercício material do poder político a grupos muito precisos de cidadãos especificamente mandatados para representar instrumentalmente a vontade colectiva pudesse, na prática, derivar, de forma excrescencial (des!) estruturalmente perversa (como acontece, de resto, nas "nossas" democracias ocidentais em geral) para a cedência objectiva do próprio poder, transformando assim o que era originalmente suposto ser um regime realmente representativo em formas objectuais de "despotismo (supostamente!) esclarecido" ou mesmo, no caso perversíssimo das maiorias "absolutas", em modalidades materiais de "totalitarismo plebiscitário" ou de "autocracia institucionalmente negociada e consentida".

Não há, pois, repito, no que digo qualquer intuito im/puramente demagógico, a emissão de quaisquer "palpites" gratuitos, desprovidos de substanciação teórica e argumentativa.

Não!

O que eu digo é muito claro: é que, voltando a reportar-me directamente ao texto do "Público", estragar a comparativamente "pequena" (microcósmica, em todo o caso) propriedade colectiva, seja sob que forma for, não configura, na realidade, um qualquer acto ou conjunto de actos avulsos, soltos, isolados, fora de uma linha de perversão democrática nuclear objectiva (de facto mas também de direito) que vem já muito de trás e que se inicia logo no modo como o partido a que Vital Moreira dá hoje, pelos vistos, o seu apoio concebe (chamemos-lhe:) teoricamente a democracia (o desenho institucional da "democracia") e o põe, em seguida, em prática.

É, pois, toda uma praxis concreta mas é, de igual modo (e sobretudo) a montante uma Teórica global que estão aqui em causa.

Uma suposta "democracia" que não se vigia nem se auto-regenera continuamente em tempo real (ou, no mínimo, em tempo tão real quanto possível); que não pune os grandes actos de "abuso [deliberado ou simplesmente negligente e incompetente] dos bens públicos"; que faz deles... "políticas" e (mais grave ainda!) "Política" ordinária; cuja Cidadania não considera absolutamente necessário intervir sempre que têm lugar abusos frequentes, alguns deles verdadeiramente escandalosos do poder instituído; uma "democracia" que não tem meios ou alfaias institucionais específicos para fazê-lo; que se fica pela punição (ou pelo desejo mais ou menos abstracto e mais ou menos "moral" de punição, como sucede no artigo de Vital Moreira) dos actos de irresponsabilidade e depredação em comparativamente pequena escala, deixando que os de "grande escala" passem tranquilamente impunes ou fiquem entregues à "penalização" objectivamente "moral" das eleições; uma... "democracia" assim entendida e assim realizada é uma "democracia" que sonha levianamente 'endireitar a sombra da vara', deixando, porém, esta virtualmente intacta e sempre, na própria base, literalmente incólume.

É, em suma, repito, uma "cultura" de total "passividade plebiscitária" que começa, nunca será demais repeti-lo, necessariamente muito antes dos inevitáveis acidentes mais ou menos 'microcómicos' que está fatalmente condenada a gerar.

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Volto ao início destas reflexões: a Revolução hoje em dia (Vital Moreira, que, pelos vistos, se cansou ou se fartou de "esperar por ela" e de preconizá-la discordará mas paciência!...); a Revolução, hoje em dia, ia dizendo, passa (passa, aliás, a meu ver, de forma verdadeiramente central, verticial mesmo) por "tudo quanto seja" subverter radicalmente o próprio modelo (a Teórica e a prática do próprio modelo) de propriedade ou de 'proprietação' política do conhecimento; passa por subverter no in/essencial a propriedade politicamente sustentada dos meios de re/produção social de conhecimento--por exemplo, denunciando de forma pública o papel in/essencialmente conservador, senão mesmo aberta--sistemicamente!--reaccionário da Escola dita ainda "pública" neo-burguesa e pós-moderna, destinada a recolher os "estilhaços" inertes do saber económica e financeiramente desactivado pelo Capital privado no seu papel neo-liberal de gerar "valor" ou "converter-se im/pura e simplesmente nele").

E dou aqui o prometido segundo "exemplo": graças à generosidade e à lucidez da bibliotecária da Biblioteca Municipal da cidade onde vivo, houve em tempos possibilidade de organizar-se um modestíssimo "Cine-clube na Biblioteca" onde fosse possível, para além de se "consumir" Cinema, "refazer critica e analiticamente" por inteiro esse mesmo Cinema enquanto forma de estar esclarecida e vigilantemente no mundo de onde esse Cinema (e todos nós! E tudo quanto nos diz, social, cultu(r)al, ideológica e politicamente respeito) provém e é gerado.

O mundo cinematográfico de hoje está, lastimavelmente, marcado, em termos genéricos, por uma perspectiva im/puramente imediatista e de mero "consumo" que, a meu ver, reflecte já (lá está!) tessitariamente o próprio projecto que a "sociedade de classes", re/organizada a partir da já referida propriedade política dos meios de produção conhecimento, pretende que, enquanto sociedade ou "paradigma de societação", tenhamos para o 'desenho' estável da nossa própria "consciência" individual e colectiva, ou seja, do nosso modo caracteístico de delinear um paradigma estável de "inteligência cultu(r)al" e mesmo genericamente "civilizacional" da realidade.

Hoje, reapropriar-nos 'revolucionariamente' desses meios de acesso livre e directo ao real (isto é, de redescobrir os próprios fundamentos teóricos e práticos de uma autêntica Democracia; de uma Democracia verdadeiramente moderna e actuante) significa desde logo (e foi nessa perspectiva 'subversiva' concreta e específica que concebemos, a Dra. Elvira e eu próprio, o nosso cine-clube) reflectir seriamente (fomentar por todas as formas possíveis a reflexão) sobre o próprio modo como o Cinema e a Arte em geral operam no quadro dessa nova 'divisão social da propriedade do Conhecimento e dos meios possíveis de Conhecer'.

Significa pensar realmente não só o Cinema enquanto meio, enquanto 'medium' de Conhecimento e de expressão estética, mas também a nossa relação íntima e (des) estrutural genericamente com a Arte e a Cultura de que ele é parte integrante e essencial.

Lá está! Hoje em dia, as pessoas, já (des) estruturalmente marcadas pelo desejo politicamente induzido de consumir, preferem claramente os produtos enquanto tal da "fabricação" (e uso aqui o termo deliberadamente, ham?) de expressão genericamente estética a qualquer modalidade reconhecível de concretização paradigmas autónomos e pessoais de relação, intelectual e intelectivamente saudável, com a própria produção de pensamento e consciência (de Estética enquanto "inteligência específica da realidade") operada a partir da própria criação cinematográfica como tal, i.e. como acto (ou em termos genéricos: como acticidade) estrita mas não estreitamente de Cultura (e também--porque não?!--de Política, de Civilização e "por aí fora").

O que propúnhamos era, então, neste quadro crítico preciso, que se re-perspectivasse, daquele ponto de vista criticamente integrante e orgânico, idealmente, todo o nosso olhar cultu(r)al e político sobre o real de modo a que sempre que nos viessem dizer, como agora, com gritinhos de indignação e esgares de virgindade escandalizada, que um fulano qualquer tinha "descascado" ou ajudado a "descascar" uma falésia em Sines ou em V. N. Milfontes ("esquecendo-se" de referir que, no mesmo exacto instante histórico e político, um outro, confortavelmente instalado no próprio coração do poder, havia impunemente depredado o património colectivo, decidindo, sem ouvir no fundo ninguém--a não ser a vozinha interior que lhe sussurrava que isso iria seguramente ser um excelente negócio para alguém) a construção de uma ponte que serve por dia, por mês, por ano "meia dúzia" de pessoas (além de à noite "dar um jeitão" para que um bando de arruaceiros motorizados possa pôr regularmente em risco a vida da comunidade, de tal modo a "coisa" se revelou, além de caríssima, globalmente inútil); quando, pois, nos viessem declarar com indignado e púdico horror que estava para rir uma falésia (e é horrível que por toda a parte possam ruir tão impune quanto continuamente falésias, não haja dúvidas relativamente isso!) enquanto um qualquer fulano instalado, como disse, no próprio coração do poder determinava, então, que se construisse um "quasi elefante branco" que, afinal, não resolveu nada daquilo que era suposto resolver em termos da redistribuição equilibrada dos fluxos de tráfego ou ordenava a construção do tal TGV que é, repito, para muitos, a resposta "europeia" pós-moderna ao "Vaticano na selva" de Boigny; o que propúnhamos, era, pois, concluindo o meu raciocínio, que sempre que o atrás descrito acontecesse de imediato pudesse logo perceber-se a estreita ligação que existe entre o modo como as classes (e o poder) estão hoje-por-hoje (des) organizados e um modelo de sociedade assente, em última instância, (im) precisamente na des-organização sistemática (sistémica!) dos nossos modos cultu(r)ais e políticos de (não!) nos relacionarmos, enquanto indivíduos e enquanto sociedades com a realidade à nossa volta.
E tudo o resto é folclore.
[Imagem do topo extraída com vénia de "afavanomeubolo.blogspot.com"]

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