Sobre a espantosa obra do Marquês de Sade, aduzo algumas observações e reflexões pessoais noutros lugares deste "Diário". Gostaria aqui de referir apenas, de modo específico, "Justine" e sobre ela tecer algumas considerações em especial.
Ora, é preciso dizer que "Justine" é uma obra interessantíssima, não propriament unitária e "orgânica" (essa é, pode dizer-se, uma característica da escrita de de Sade e, de algum modo, também na prosa ficcional do seu século) da qual o seu, noutros lugares já citado, biógrafo, Geoffrey Gorer escreve (em "The Life And Ideas Of The Marquis de Sade", por exemplo que "Aline et Valcour", é uma obra que "slightly pruned could stand against any other product of its country and century"--op. cit. página 70--ou, a propósito de "Les 120 Journées de Sodome", que a "galeria de retratos" que a obra inclui "is an astound performance, as a piece of writing hardly ever equalled", loc. cit. página 73); é preciso dizer, comecei atrás a aduzir, que "Justine" de de Sade é uma obra interessantíssima cuja "polipolaridade narracional" 'herda' por exemplo da picaresca espanhola e dos seus ecos em França (recordemos, desde logo, o "Gil Blas de Santillane") a característica descentralidade que define a economia desta, sendo que (é uma opinião estritamente pessoal, tanto quanto posso afirmar) há, a meu ver, no modo como o pícaro "puro", por um lado e de Sade, por outro, concebem a inorganicidade torrencial do 'conto' um reflexo subjeccional da própria desordem histórica e social do tempo em que escrevem.
Tal desordem pode ser entendida (ou, no mínimo, considerada em tese) como constituindo um modo de aperceber mais ou menos inconscientemente e, em seguida, em termos concretos, de representar em literatura a inquietação e a subversão da própria consistência e da solidez histórica, social, política, em volta, no caso espanhol próprios de uma sociedade que (embora o século seja "de ouro"...) se vai lentamente desintegrando e, no caso francês, vai criando, uma a uma, afinal, todas as condições, objectivas e subjectivas, para a Revolução, como também nota Gorer, falando especificamente a propósito de "Aline et Valcour".
Este um aspecto que gostaria de referir aqui de modo particular.
Outro diz respeito ao modo específico como "Justine" re/trabalha minuciosamente, até certo momento da obra de forma dificilmente ignorável mas conferindo-lhe uma fortíssima componente de carnalidade (eu diria: utilizando todas as partes e funções do corpo, do indivíduo como corporalidade que é a grande 'descoberta concepcional' do século XVIII) o motivo central do "Candide" de Voltaire.
No fundo, já Camões entre nós (outro homem da "dissolução civilizacional", muitas vezes reduzido à condição redutora de... 'simples' "épico" e, pior ainda, de "épico de serviço"...) descobrira o que no mundo em volta havia de profundamente inquietante e inessencial "desconcerto" reflectindo-o, de algum modo (de modo incompletamente consciente?) na sua própria visão amargurada e, às vezes (vou ser deliberadamente provocatório...) pré-patriciano de amor'.
O discurso camoneano sobre "o desconcerto do mundo" "está todo" em de Sade e seguramente está-o em "Justine". Vou citar apenas um exemplo: debatendo com a própria Justine o tenebroso plano de levá-la a cometer um crime, discorre o perverso Bressac: "Oh ma chère Thérèse (...) comme les prosperités pleuvent sur moi! Je te l' ai dit souvent, l' idée d' un crime, ou son exécution, est le plus sûr moyen d' attirer le bonhrur; il n' en est plus que pour les scélerats", (página 85 da edição 10/18 de 1969).
Repare-se, sobretudo, na total não-inocência crítica daquele "plus" que não está ali em lugar de um simples "pas" certamente por acaso...
Voltando, porém, a Voltaire e a "Candide": é, volto a dizer, difícil não "revê-lo" nesta "Justine" a quem a tradição moral se obstina em guiar, vendo ela constantemente ruir na prática tudo quanto ela "diz" e defende como essência de um modo completamente em crise de conceber a realidade concreta: social, política, etc.
Por último, uma outra particularidade relativa à interacção, à osmose, à... 'porosidade' (e nesse sentido, à riqueza e ao interesse cultu(r)al da obra sadiana) com o seu tempo: refiro-me ao mofo como, se "lá está" Voltaire também está (e mais de uma vez,em mais de um momento) Swift, o satírico Swift de "Gulliver" mas não só. Está-o, diria, no modo sardónico, às vezes inquietantemente cínico como se vai oposicionando perante a 'Ordem' e sobretudo (e, sobretudo!) sobre aqueles que muitos se obstinm ainda em considerar acrítica e apenas mecanicamente como os seus (supostamente inabaláveis) "fundamentos".
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