domingo, 4 de janeiro de 2009

"Algumas reflexões sobre o western"

A propósito de "A Desaparecida" ("The Searchers") de John Ford: já o disse noutro lugar deste "Diário"--teria forçosamente de inclui-lo entre os dez melhores westerns alguma vez realizados e entre os vinte/vinte e cinco melhores filmes de sempre.


Entre os primeiros, incluo:


"Rio Bravo" de Hawks


"The Searchers" de Ford


"High Noon" de Fred Zinemann


"Shane" de George Stevens

"River Of No Return" de Preminger

"Night Passage" de James Neilsen
"Gunfight At The O.K. Corral" de Robert Aldrich


"They Came To Cordura" de Robert Rossen

"The Man From Laramie" de Anthony Mann

"Three-ten To Yuma" de Delmer Daves

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Destes meu favorito é definitivamente "Rio Bravo", de Hawks. É juntamente com "Playtime" e, muito especialmente, "Mon Oncle" de Tati um filme que revejo regularmente, sempre com renovado entusiasmo e um invariavelmente renascido fascínio.



Não tem, por exemplo, o devastador desencanto de "High Noon" ("contra" o qual terá, segundo a "lenda", de resto, sido feito); não tem a profunda seriedade, a densidade humana de "The Searchers" (poucos realizadores teriam, como Ford, sido capazes de tornar humana, logo desde o início do filme, a figura do misantropo e racista Ethan, contextualizando minuciosamente mas com uma subtileza e uma discrição absolutamente notáveis, a sua intolerância e convertendo mesmo o seu percurso desde o ódio à "redenção" final num problema com uma fortíssima dimensão universal susceptível de despertar a empatia de todos nós: o filme é uma descida aos infernos do ódio, poderosamente descrita e soberbamente compreendida, contada com uma contenção e um pathos a que muito poucos actores com excepção de Wayne seriam capazes de dar um rosto e um corpo tão solidamente definitivos); não tem isso mas tem, paradoxalmente... 'tudo': tem actores fabulosos (Dean Martin, por exemplo, é perfeito não sendo nunca 'académico' nem, de qualquer outro modo, tecnicamente 'exemplar': não precisando, diria eu, de saber ser nem uma nem outra dessas coisas...; Walter Brennan e Ward Bond são figuras absolutamente insuperáveis, nenhum deles tendo de lidar com "personae" dramáticas propriamente muito originais ou realmente excepcionais: o que cada um deles faz, à semelhança do que consegue o próprio Hawks genericamente com o filme, é conferir a cada uma dessas "personae" o estatuto paradigmático que as torna dificilmente repetíveis, com um mínimo de eficácia narrativa, a partir daí (1); Angie Dickinson é o complemento ideal do sólido, todo-poderoso ("high and mighty"...) , Wayne: nunca lograria, aliás, repetir a qualidade do seu desempenho no filme).

Deste fez Hawks um tour-de-force notável: um western 'de interiores' onde, todavia, a acção nunca cessa de realizar-se, numa fabulosa, contínua, 'festa dos sentidos' (muito mais do que reflexão ou mesmo da genuína inteligência: a única inteligência ali é exactamente essa dos sentidos, a que a própria acção, operando como algo magnético e até, por vezes, hipnótico, impõe e determina. Não é, todavia, apenas por esse facto que "Rio Bravo" é um tour-de-force genial.

Eu costumo dizer que, se se tivesse cumprido o que durante algum tempo foi uma espécie de sonho (muito remoto, de resto) meu de leccionar numa universidade, um dos filmes que eu escolheria para ilustrar a própria essência do uso das três unidades aristotélicas (algo, aliás, que, a mim, pessoalmente, durante muito tempo, sempre me acudia ao espírito, muito mais como uma bizarria e uma imposição, no fundo, limitadora e--possivelmente--gratuita do que propriamente como um elemento útil, uma ferramenta narrativa e composicional susceptível de permitir gerar obras de arte "vivas", como diria Régio), seria, sem dúvida, "Rio Bravo", de Hawks. Desse ponto de vista, o filme é, como digo, uma espécie de ... "objecto aristotélico" exemplar, algo que só um excepcional contador de histórias seria capaz de levar a cabo. O tour-de-force que refiro reside, precisamente, aí: no modo como Hawks (talvez) re/citando (e, ao mesmo tempo, "criticando" Zinnemann pela sua amarga reflexão alegórica sobre o maccarthyismo que é "High Noon") consegue, de passo, revivificar a "poética" aristotélica, transplantando-a com um bêbado regenerado, um velho aleijado, uma jogadora profissional e um xerife desengonçado, para o condado de Presidio, no "great state of Texas, U.S.A.")... Num certo sentido, "Rio Bravo" é (mau grado a importância e o significado do soberbo Cinema de Ford) o western.

É-o no estrito sentido em que tudo nele é claro, nítido e está perfeitamente definido em termos estéticos, éticos etc. Ou seja: também desse ponto de vista o filme configura algo de argumentativamente "aristotelizante", digamos assim. No preciso sentido em que, através da (cuidadíssima, de resto) arquetipicização das personagens e até das situações, habilmente enquadradas numa dinâmica pura de 'play' (de 'jogo' mas também de 'representação' e até de 'música', em mais de um sentido, de resto) propicia claramente uma catarse final onde está (volto a dizer: argumentativamente) muito do que Aristóteles preconizou para a tragédia e que os diversos paradigmas narracionais ulteriores sucessivamente foram, como se sabe, herdando, recompondo--e, por fim, de um modo ou de outro, incorporarando.

Pessoalmente, acho até que, num certo sentido, Hawks é ainda mais um homem de "rituais" do que Ford. Ford é (a meu ver pelo menos...) mais elaborado nas 'reciclagens', mais subtil, talvez mesmo mais... "artístico", mais europeu. É verdade que determinados rostos e determinadas "personae" a eles associados, no cinema de Ford (os de Wayne, de MacLaglen e de mais umas quantos actores chave da opus fordiana) transitam, com pequenos 'retoques' mais ou menos de circunstância, constantemente de filme para filme, tornando, como alguém também dizia, no documentário de Bogdanovitch, aconselhável ver "todo o Ford" para percebê-lo melhor e, sobretudo, para perceber melhor cada um dos filmes que dirigiu. Em Hawks, todavia, porque Hawks é muito mais directo; é, diria, (chamemos-lhe assim...) incomparavelmente mais... imediatamente vital, o contínuo "trânsito dos rituais" torna-se francamente mais reconhecível. O que fica perfeitamente claro, diria eu, a partir da análise, mesmo muito rápida e superficial, do que Hawks faz (para não referir muitos outros exemplos passíveis de serem citados para ilustrar esta... "tese") com a famosa sequência da Winchester atirada de Monty Clift para Wayne em "Red River" para a mesmíssima situação protagonizada por Ricky Nelson e o mesmíssimo Wayne em "Rio Bravo"; assim como, de resto, o que ele faz genericamente com este último filme e "Eldorado". Ou até o que fez com alguns momentos e personagens de "To Have And Have Not" de 1944 e os citados "Rio Bravo" e "Eldorado".

Eu atrever-me-ia mesmo a dizer que o grande mérito artístico e especificamente cinematográfico de Hawks consiste no modo, por vezes simplesmente genial, como recupera e eleva a um grau de depuração frequentemente arquetipal (senão mesmo genuinamente arquetípico) todo um motivário ou todo um temário específico disperso a que ele, no seu melhor (e "Rio Bravo" está seguramente aí situado, no melhor que Hawks alguma vez fez) logrou conferir expresão, de algum modo, definitiva. Tão definitiva que, retomada, mesmo pelo próprio Hawks (como sucedeu com o referido "Eldorado") é já completamente redundante e deixou, por isso, atingido anteriormente o referido estádio de... "insecto perfeito", pura e simplesmente de funcionar.

Duas palavras, porém, ainda, a "The Searchers": para além de quanto sobre ele já disse, é, também, curiosamente (e esse é um elemento que não pode, de todo, dissociar-se da qualidade caracteristicamente fordiana da obra) um dos filmes em que John Wayne nos aparece mais humano e, sobretudo, mais vulnerável.)


(1) Num documentário sobre Ford realizado por Peter Bogdanovitch alguém refere o modo como o cinema de Ford é um "cinema de rituais". O de Ford é-o seguramente mas não será menos o de Hawks que, aliás, se copia a si próprio "descaradamente", numa espécie de contínua reciclagem dos referidos "rituais", alguns deles estritamente pessoais, outro de um vastíssimo património cinematográfico e cultu(r)al comum a inúmeros "western makers".

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