segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

"The 'divine' Marquis" [1]


Um dos Autores (grafo com maiúscula intencionalmente...) cuja leitura tão extensiva quanto possível estava há muito reservada para "quando me reformasse" era Sade.

De Sade (des) conhece-se usualmente nome (o último...) e todo um conjunto de vulgaridades, equívocos e puras e simples falsidades que, devo dizer desde já, o seu inequívoco talento de escritor está muito longe de merecer.

A julgar por aquelas das suas obras conhecidas (refiro-me às que não se perderam ou foram destruídas ou roubadas e a que tive até ao momento acesso: até os nazis, cujos campos de extermínio sob inúmeros aspectos antecipou na sua forma física mas sobretudo na sua forma existencial e moral, como Pasolini muito claramente percebeu; até os nazis, dizia, deram uma "ajuda preciosa" para que desconhecêssemos hoje uma parte significativa do que foi a multímoda obra do criador de "Justine"); a julgar, dizia, por quanto destas ficou e se conhece (há ainda, com efeito, obra sua inédita) Sade era um homem de uma profunda humanidade assim como de uma por vezes espantosa modernidade, apta, aliás, a manifestar-se dos mais diversos modos e maneiras.
As suas cartas pessoais, por exemplo (como nota um seu crítico e biógrafo, Geoffrey Gorer in "The Life And Ideas Of The Marquis De Sade", Panther Books Londres, 1934) revelam-nos um homem profundamente marcado pela vida (que, de resto, provocou, muitas vezes, até ao limite do social e do eticamente tolerável, é preciso honestamente reconhecê-lo); obsessivamente perseguido pela sogra, Madame de Montreuil, que dele se serviu para ascender socialmente mas que sempre o detestou; abandonado no fim da vida pelos filhos, um deles autor directo de ulteriores dilapidações da sua obra literária, filosófica e política; longo tempo encarcerado; precursor da Revolução e maltratado por ela enquanto tal mas, de igual modo, pelo respectivo 'refluxo' restauracionista; dilacerado por dúvidas e assolado por inumeráveis contradições pessoais; amargurado pelo roubo constante das suas obras; sempre perseguido pelas consequências fatais dos seus próprios erros e dos seus contínuos excessos; mas sempre um homem espantosamente consciente e lúcido, um sedutor natural, a seu modo, um estóico esclarecido e sofredor.
Muito longe, pois, do simples monstro que a vox populi dele correntemnte fez.

Diz Gorer a dado passo da obra citada: "His qualities as a letter writer are outstanding; in those spontaneous effusions he achieves all the vivacity, the fantasy, the gamut of moods and emotions, the grace and eloquence which always escaped him as a playright".

O que dele li neste âmbito demonstra, com irrefutável clareza, a total justeza destas afirmações: as suas cartas revelam, com efeito e com uma espantosa, por vezes, dolorosa, nitidez um homem de corpo inteiro--"nada más que todo un hombre", como diria Unamuno...--mas um homem que conhecia--de resto, como disse, com uma agudíssima e impiedosa lucidez--toda a extensão das respectivas fraquezas; um homem que se conhece e tenta aceitar-se na sua profunda e não-raro moral existencial e socialmente 'perigosa', diferença; por vezes, como também referi, um estóico mas, sobretudo, um (a expressão impôs-se-me mais de uma vez ao espírito enquanto o lia...) "racionalista desesperado e implacável" que vai lidando com a tragédia da sua vida (quase...) sempre com um rigor sem concessões e uma admiravelmente sóbria dignidade intelectual e crítica, analítica e auto-analítica, que ele, de resto, foi frequentemente capaz de expressar, como também admite, por outras palavras, Gorer (que obviamente o admira) com uma modernidade de estilo e uma quase cirúrgica percepção do essencial que toca, não-raro, as raias da mais sofisticada auto-punição.

O modo como testamenta todos os detalhes do (não!) cerimonial do seu próprio enterro (a juntar à circunstância--não da sua responsabilidade essa, mas, de algum modo... "simbólica", de não lhe terem sobrevivido fisicamente retratos pessoais (1)--por exemplo, configura um incrivelmente lúcido exercício de tácito auto-julgamento e humaníssima--estóica, impiedosa--lucidez.

Deixa, com efeito, Sade testamentado o desejo (não cumprido, de resto, como também refere Gorer) de ser enterrado numa sua propriedade sita em Malmaison, na comuna de Mance, próximo de Epernon desta forma absolutamente arrepiante de frieza e de uma gélida quase indiferença senão mesmo de um subtil desdém por si próprio: "A minha sepultura deve ser cavada no mato pelo homem que trata do campo em Malmaison sob a vigilância do senhor Lenormand que apenas se afastará do meu corpo depois de ele ter sido deposto na cova.
Caso este último manifeste o desejo de ser acompanhado nesta cerimónia por aqueles, de entre os meus parentes e amigos que, sem a mínima demonstração de dor ou luto, quiserem ter a gentileza de prestar-me essa derradeira prova de estima, fica autorizado a fazê-lo. Uma vez tapada a sepultura serão sobre ela plantados carvalhos de modo a que, no futuro, voltando o mato a crescer e ás árvores plantadas a cobrir todo o local como se nada tivesse sido nele mudado, os vestígios da minha campa desapareçam definitivamente da face da terra (...)

E acrescenta, implacável: "Pela minha parte lisonjeio-me acreditando que também a minha recordação será completamente varrida da memória dos homens, com execepção daqueles cujo afecto por mim permaneceu vivo até ao fim e dos quais levo comigo para a cova uma recordação que é feliz".

Chega a arrepiar reler e dolorosamente... "saborear", nos seus arrepiantes, exaustos, desencantados subentendidos, toda a trágica extensão deste impiedoso, tácito, derradeiro libelo acusatório de si próprio, redigido com tão inexorável--indirecta e pressuposta embora--determinação quanto resignada, estóica, frieza.

Sade revela, na primeira parte (no primeiro terço) de "Justine ou Les Malheurs de la Vertu") toda a amplitude do "racionalista desesperado" que, a meu ver, foi e de que atrás falo--atitude que comporta, em meu entender, uma fortíssima componente de quase "pré-existencialista" (pré-dostoievskiana, seguramente) modernidade no modo como usa cirúrgica e mesmo um pouco socraticamente a própria Razão a fim de, ou desmontar as respectivas fragilidades des/estruturais enquanto instrumento de "Conhecimento" humano ou, por outro lado, revelar, em toda a trágica extensão da consciência que do facto é possível formar e ter, o absurdo da própria realidade como tal, do próprio mundo, da realidade enquanto objecto e sistema--a começar por aquele mundo que no imediato concretiza a (in?) capacidade humana para organizar-se como todo coerente e portador de sentido reconhecível.
A "sociedade".


(1) Terá escapado um que viria, posteriormente, todavia a perder-se também, em 1941, durante um saque das tropas alemãs de ocupação.

[Perante a inexistência de efígies escolhi para ilustrar esta 'entrada' a célebre representação de Sarte devida à pena e ao talento de Man Ray]

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