quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

"Re/vendo "Teorema" de Pier Paolo Pasolini"

Revi-o hoje ao regravá-lo em DVD. Revê-lo suscitou-me algumas reflexões que passo a enunciar.

Primeira: a re/confirmação da existência... transnacional de uma espécie de "grande famille" de 'originais' e 'provocadores'--uma 'família' onde se incluem nomes como os de Oliveira, entre nós; de Buñuel, em Espanha (sem esquecer a França, claro); de Straub ou Godard, nesta última e de Ferreri e Pasolini, em Itália.

Para apenas citar estes, claro.

Trata-se, diria eu, de artistas (literalmente!) inqualificáveis e esteticamente insituáveis, de méritos especificamente cinematográficos argumentativamente distintos cujo (talvez...) principal mérito consiste, num certo sentido (também) formal, no modo como provocam e inquietam--no modo como desafiam e nos levam continuamente a reformular, desde logo as nossas maneiras (chamemos-lhes) mais tradicionais ou mesmo mais... burguesas de (não?) conceber a Arte, designadamente a cinematográfica.

Todos eles, de um modo ou de outro, acharam, claramente, maneira(s) em maior ou menor escala próprias e originais de reflectir, em quanto fazem ou fizeram, sobre o próprio meio de que se servem para discorrer, afinal, sobre tudo--da Estética enquanto tal, à própria condição humana, nos seus múltiplos aspectos, em última (e, sem dúvida, mais relevante) instância.

"Teorema", falando especificamente dele, sem ser propriamente uma obra-prima do cinema é, acima de tudo, um filme idóneo quanto às propostas, chamemos-lhes assim: teóricas ao mesmo tempo que se revela quase sempre sempre interessante enquanto objecto fílmico propriamente dito.

É, desde logo, um filme de firme recusa às fórmulas ou aos... teoremas.

A sua grande lição é, de resto, exactamente essa: fórmula alguma é susceptível de, enquanto tal, isto é, enquanto fórmula, cartilha ou dogma, devolver a felicidade a uma sociedade que se extraviou decididamente dos seus próprios objectivos individuais e colectivos, das suas referências existenciais... essenciais (se me é permitido dizer deste modo apenas aparentemente paradoxal).

"Teorema" é Pasolini, como sempre interveniente e reflexivo, problematizador e também problemático, provocador e, de algum modo, também subversivo.

Subversivo a vários planos e nas mais diversas áreas: subversor relativamente a uma Esquerda oficial à qual repugna a lúcida insatisfação ideológica do escritor e cineasta--uma Esquerda que, a dado passo, iniciará na Itália "de" Pasolini, um processo de acelerada descaracterização e desintegração que a levará, primeiro, ao famigerado "compromisso histórico" que, por sua vez, a afastará definitivamente da juventude urbana que nela e nas suas hesitações e contínuas concessões à "ordem" estabelecida deixa progressivamente de rever-se e, por fim, à dissolução pura e simples; subversor, por outro lado, de uma Itália "média" ou "profunda", tácita (para não dizer: inerte e mecanica) mente católica que não lhe perdoa a lucidez com que denuncia mitos e põe em cheque estreitezas morais e dogmatismos de toda a ordem e natureza, as ousadias e, por fim, a homossexualidade.

Homossexualidade que está, aliás, "em todo o lado", em "Teorema".

Um dos aspectos chamemos-lhes: curiosos do filme reside, de resto, precisamente aí, no modo contraditório e até, um pouco (ou um muito?) surpreendentemente contraditório como Pasolini parece no filme equacionar senão mesmo associar directamente a (homo) sexualidade e o 'huit clos' de uma sociedade que se busca a si mesma nos lugares errados, digamos asim.

Parece, com efeito, poder admitir-se que, com a chegada daquele misterioso indivíduo que (como Cristo) vem subverter radicalmente as (in?) consciências (ou induzir despertar e, em derradeira instância, possibilitar) estas últimas e lançar a completa des-ordem num microcosmo económico-social e cultu(r)al até aí aparentemente conformado com (inconsciente relativamente a) o vazio existencial em que se acha encalhado sem do facto se dar conta, todos acabam, de um modo ou de outro, iniciando um processo de busca pessoal distinto que há-de levar alguns (como a Mãe) à promiscuidade sexual onde a busca acabará fatalmente frustrada (uma fabulosa expressão da fabulosa Mangano di-lo sem precisar de palavras de um modo magistral).
Outros (como o Pai) à entrega da fábrica aos operários e a uma espécie de retracção ascética ou ascetizante (o despir-se simbolicamente e o empreendimento de uma travessia não menos frustre do deserto onde acabará clamando, como no paradigma bíblico clássico, são sinais claros) de "erro"--um erro que, seguindo uma via aparentemente distinta da anterior, há-de , como ela, terminar, todavia, no fracasso.

Outros (como a filha) petrificarão, agarrados a um mistério que nunca decifraremos e que permanecerá, por isso, como marca distintiva do seu convulso isolamento, da sua trágica solidão, da sua incapacidade irregressível de comunicar e fazer-se ouvir.

Outros, ainda, como o filho (Pasolini? Algo de Pasolini?) buscarão numa Arte vivida às cegas, numa procura angustiada e solitária, a razão de existir (e de co-existir) que dolorosamente lhe falta e que Arte alguma enquanto tal lhe pode dar.
Esta personagem (e por isso me questiono sobre quanto de Pasolini há nela) vive o drama do isolamento cultu(r)al e politicamente trágico do intelectual na sociedade materialista de hoje (dos anos '70, em todo o caso) após ter vivido o não menos trágico e dilacerante drama da homossexualidade que, ao invés da do pai, se disfarça apenas muito imperfeita e muito insatisfatoriamente de "camaradagem" e mera "cumplicidade".

É, da família, o único para quem Pasolini parece ter reservado um olhar, apesar de tudo, simpático e até cordial: vive, como disse, um drama que é o do próprio Pasolini e, sob diversos aspectos, o do intelectual nos dias e na sociedade de hoje.

Todos eles começam por sentir o apelo da consciência por via (homo) sexual, sendo que as personagens "positivas" (o filho e uma outra que até aqui propositadamente deixei de fora destas brevíssimas considerações, a de Emília, a criada, papel desempenhado pela pasoliniana Laura Betti de que adiante falarei com mais detalhe) acabam, de um modo ou de outro, transcendendo, superando, o que parece ser o "simples" ponto de partida, a mera porta de entrada da própria consciência que há-de conduzir Emília à ruptura com o universo burguês (e) da servidão; a um regresso/reinício às próprias origens, num recomeço simbólico da própria existência; à "ressurreição" e à "ascensão" finais que mais nenhuma das personagens... "burguesas" conhecerá.

Emília, com efeito, num plano particularmente eficaz em termos plásticos e narrativos, após uma espécie de purga da afluência anteriormente vivida (vivida num plano secundário e ancilar) parece, a dado momento, erguer-se no ar e subir aos céus numa muito tolstoiana "ressurreição" ("Senhor e Servo" de Tolstoi, autor, ele mesmo, de uma clássuica "Ressurreição", é expressamente citado no filme).

E nem é relevante saber se, efectivamente, "subiu" ou não ao céu, se teve uma alucinação devida aos jejuns, se foi a imaginação popular daqueles "mujiks lombardos" que assim a julgou ver: o que é importante é que a minúscula partícula da "classe operária" italiana (por cuja representação directa o filme abre, de resto) acha neste um lugar particular marcado pela ruptura com um determinado código de (anti?) valores excessivamente materiais (até em algumas das "soluções" achadas para preencher o vazio) e um simbólico regresso às origens que são, com o se sabe, estruturalmente distintas das das restantes personagens do filme.

Soluções concretas?

Pasolini, como disse, não as dá no filme como na vida: em diversas entrevistas o referiu. Não há soluções milagrosas nem "receitas" para a felicidade individual ou colectiva.
O seu propósito parece, pelo contrário, ser o da valorização das vias pessoais e da ruptura ou das rupturas como pressuposto básico e essencial de "ressurreição"---social, cultu(r)al, política, a todos os níveis.

Como filme, "Teorema" é, quase sempre, no mínimo, estimulante.

Joga (ecoando de forma natural, no plano plástico-narrativo, a proposta fundamental do próprio argumento) na cesura, no corte, na dissonância, num certo quase "gauchismo" da Forma por onde, à semelhança de Godard ou Straub (e à dissemelhança de Costa-Gravas ou Sotto) a "revolução" deve fatalmente iniciar-se.

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