domingo, 4 de janeiro de 2009

"Brevíssimas notas pessoais sobre a semiótica d' "A Desaparecida" de John Ford"


Um dos meus prazeres cinéfilos muito pessoais (directamente ligados a um tipo de abordagem crítica da obra de Arte muito peculiar a que chamo genericamente "leiturar") consiste em imaginar "A Desaparecida" de Ford como contendo uma espécie de 'rede' subliminar ou, como diria Freud (que é, de resto, com a sua "significada" e muito imaginosa análise de "Hamlet", a fonte de inspiração electiva da prática--e da Teórica, se a há!...--da "leituração" tal como eu próprio me permito concebê-la) um 'referencial (mais ou menos) contínuo e reticular de conteúdo' muito subtilmente latente (cá está o pormenor freudiano!), potenciador do próprio "significado" ou "significados" reais ("ultimate") do filme, dado por três passos, imagens ou, como poderia também dizer-se: por três instantes narracionais básicos:

Um primeiro instante, situado ainda na "abertura" (na "ouverture", em termos musicais e especficamente operáticos) do filme (de facto, logo no próprio genérico do mesmo) quando Ford nos confronta com uma parede de tijolo (figura 1) figurando, simbologicamente, a "casa" (o lugar físico e não-físico para onde se volta sempre de um modo ou de outro, mas também a "casa", por sua vez, como referencia simbológica alargada do próprio Eu) mas também, muito mais abstractamente ainda, a parede aqui introduzida na (pré) narração da obra como expressão visível do "problema", do "bloqueio", da "resistência" ou "solavanco factual e existencial" que vai, a prazo, desencadear a própria necessidade narrativa configurada na "descida ao infernos" do ódio e da vingança que é como quem diz: aos infernos e fantasmas do Eu em (profunda) 'crise'.

É, pois, esse o momento, a circunstância, em que Ford nos coloca subliminarmente perante a emergência brusca do desconhecido, isto é, num certo sentido muito concreto, perante o sinal claro da própria des-ordem (factual, existencial, etc.) como tal--des-ordem essa de onde sairá, após a catabase e/ou consequente progressiva iniciação do indivíduo na própria necessidade vital de lidar praticamente só com a realidade, a um tempo, objectiva mas também subjectiva que o dilacera e de re/organizá-la em seguida, de modo progressivo e até, de algum modo reconhecível, simbologicamente expiatório; é, como digo, esse o momento de re/organizar substantivamente, consigo tão harmonicamente quanto possível "lá dentro", essa mesma realidade cuja estrutura, cuja substância ou cuja possível natureza interior bruscamente se rompeu.
Esse será o instante ou a circunstância do regresso a casa, juntando ambas as referências simbológicas possíveis.

Figura 1

Em seguida, o filme "abre" (figura 2) connosco a vê-lo, da perspectiva de uma das protagonistas que virá a ser assassinadas pelos índios (Martha, a actriz Dorothy Jordan) assistindo de dentro para fora da "casa" à chegada de Ethan.
Ou seja: a parede de que atrás falava "abriu-se" finalmente, deixando-nos ver o exterior, aquilo que ela durante todo o espaço do genérico insistentemente ("tantalizingly", como poderia dizer um falante anglo-saxónico) ocultou.
A realidade.

Há aqui, em meu entender, argumentativamente, uma coincidência objectiva/subjectiva entre o "in" e o "out", entre a "casa" e o "Eu", entre o exterior e o interior da própria realidade, situando o indivíduo pontualmente nesta.
Contextualizando-o.
Articulando-o com e "colando-o a" definitivamente a ela.
O filme, a partir daqui, como disse, "abre".
A casa opera aqui ao mesmo tempo como a projecção subliminar metaforizada do próprio olho. Vamos agora saber o que nos ocultava (através da parede) a própria realidade.
Vamos "entrar" nela ou "sair para" ela.

O homem, "diz-nos" esta (sub) estrutura possivelmente significada não pode permanecer muito tempo parado nem isolado relativamente ao real circundante: tem de relacionar-se activamente com o exterior de si, abrir-se ele mesmo à realidade circundante, começando a usar a sua capacidade para continuamnte re/organizá-la e re/organizar, de passo, o seu 'lugar existencial' nela, a partir do seu arbítrio e da sua natural liberdade.

Figura 2 (Martha/Dorothy Jordan vê John Wayne/Ethan Edwards aproximar-se)

O terceiro instante (figura 3) situa-se no fecho do filme--na imagem simétrica ou simetriforme da anterior, quando é Ethan que nos é apresentado no lugar onde antes estivera a irmã morta.
A ideia é, neste quadro tético, a de que o ciclo 'iniciático' se completou sem, todavia, agora ter de se voltar a fechar.
Pelo contrário: a cena permanece agora aberta atrás de Ethan, sugerindo que o processo que trouxe este do "problema" para a "solução" é um processo aberto, uma circunstâncial existencial (e existenciante) de onde emergem novas possibilidades e novas sugestões de recomposição.
Figura 3

O filme, por outras palavras com tudo quanto ele trouxe de informação existencial e existenciante permanece definitivamente 'aberto', com o 'modelo' de acção representado pelo "caso" de Ethan Edwards em primeiro plano, isto é, entre nós e todas as experiências de res/significação pessoal da realidade possíveis entre os destinatários da "mensagem" do próprio filme.

Concluindo: "sob" a viagem 'iniciática' do filme (que é o filme) é possível admitir que existam, induzidos por uma, possivelmente neste ponto em especial, nada arbitrária montagem (ou, em última instância, "teticamente des-arbitrarizável....) uma série de linhas composicionais (uma rede hipotética de imagemas) mediatamente reconhecíveis, onde, sinteticamente, um reforço do próprio significado último tético do filme está em tese contido.

Está-lo-á?

Como cinéfilo apaixonado e admirador crítico de Ford, gosto de acreditar que sim...

Gosto, por outras palavras, de leiturar o filme deste modo...

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