Começo por esclarecer que nunca senti a necessidade de me esconder atrás de quaisquer "Grandes Nomes" (Camus, Vinicius, Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, etc.) nem de recorrer ao "alibi" dos "Precedentes Ilustres" de qualquer outra, mais ou menos supostamente intimidatória e inatacável natureza, para (re) afirmar o meu gosto pessoal pelo futebol.
Talvez nem tanto pelo futebol: pelo Benfica.
Por um certo Benfica, em todo o caso.
Ora, do "meu" Benfica já falei noutro ponto deste "Diário".
O que quero dizer agora é que para muitos dos meus Amigos e conhecidos, eu "desvirtuo" substancialmente (e substantivamente?) o futebol porque (segundo uns) o "politizo" em excesso; segundo outros, porque incorro no pecado de "culturalizá-lo" com tanta impropriedade e tanta indevida frequência com que, na opinião dos primeiros, o "politizo".
Talvez, de facto, eu tenha por razões "cultu(r)ais" ou "políticas" um Benfica particular que ou já não existe ou nem sequer chegou, vez alguma, a existir.
A verdade é que não me importa muito: acho que vou ser sempre, até morrer--como o "primo Luís", o Luís Piçarra (cuja foto não desaproveito o ensejo de mostrar, tal como era no apogeu da sua tão brilhante quanto injustiçada carreira quando era, para além de um cantor lírico de vocalidade aveludada invulgarmente dúctil, para muitos, o "Piçarra do Benfica").
["Piçarra do Benfica" que no fim da vida, devorado pelo cancro, sem voz (literalmente sem voz!), arruinado, desencantado e profundamente ferido pela injustiça do total esquecimento em que o seu nome caira, guardava ainda religiosamente a bandeira vermelha do Clube, par amortalhar-lhe o corpo, incrivelmente debilitado, no momento definitivo de baixar à terra]...
Pois para o Piçarra e para mim próprio o Benfica, muito mais do que um clube "de futebol" (ou "de Hóquei" ou de outra coisa qualquer dos mesmos--limitados--âmbito e tipo) era uma "ideia" e mesmo (foi-o durante décadas em segredo, na cúmplice clandestinidade) uma espécie de "causa" onde cabia, desde logo (daí dizerem que eu "culturalizo" e/ou "politizo" em excesso a minha relação subjectiva profunda com o Clube) uma postura muito específica relativamente aos ricos, aos poderosos e (porque não?) também (e num certo sentido, sobretudo) aos tolos que imaginavam escapar a essa condição execrável de tolos (e, já agora, de pobretanas, de "gente supostamente menor" e de pelintras...) "colando-se" mais ou menos "lateralmente" aos clubes e instituições em geral que, de um modo ou de outro, para muitos, simbolizavam justamente a Afluência e o Poder.
O Sporting foi, durante muito tempo (à semelhança, aliás, do que em Espanha se passa com o Athletic de Madrid, o Ex-Atlético Sport Aviación, o verdadeiro clube "do" franquismo, indesejabilíssimo estatuto esse injustamente atribuído ao grande Real) o exemplo ou o "caso" paradigmático desse tipo de clube.
Era o "clube do Sr. Visconde" (que o fundou e lhe imprimiu, desde aí, um registo "aristocrático" que passou, de algum modo, a defini-lo no subconsciente colectivo futeboleiro nacional); era o clube "da água quente" (que a tinha nos duches e serviu para nos "roubar" a primeira grande estrela que a modalidade gerou, o Artur José Pereira que, a dado passo, nos deixaria aliciado pelo luxo "bizantino" que sornamente punham ao dispor do seu enorme talento atlético mesmo "ali ao lado").
Depois, por exemplo, que teve sede no Palácio Foz (!!!) aos Restauradores, em Lisboa, o local passou a ser, à época, vulgarmente conhecido (e não é difícil perceber porquê...) pela "agência de empregos"...
Aliás, quem ler as memórias do fabuloso guarda-redes que foi o Carlos Gomes (intituladas "O Jogo da Vida": o Carlos Gomes em termos de destino trágico foi um pouco, salvaguardas algumas diferenças importantes, "o Piçarra do Sporting") facilmente confirma quanto digo e que, ao tempo, ninguém, de um modo ou de outro, aliás, desconheceria.
É verdade que existiam (e continuam, aliás, a existir) alguns que, por tolice ou má fé, gostam de identificar o "meu" Benfica com o "clube do regime"--entendendo-se por "regime" (é preciso lembrá-lo às gerações que nasceram depois da queda da ditadura e que, por esse motivo, desconhecem as subtilezas de uma semântica politicamente prudente que vigorou entre nós durante quase meio século); entendendo-se, pois, dizia, por "regime" o fascismo.
A realidade é que o Benfica era realmente o Clube "do" engraixador, "do" tasqueiro da Mouraria ou de Alfama (ou dos Anjos, se faz favor!) e "do" sapateiro "de vão de escada".
O primeiro na caixa-da-escova-e-da-graixa, isto é, na "engraixadoria" portátil com que percorria incansavelmente os cafés e as estações de combóios dessa modorrenta "Lisboínha" pós-rural de 50 e 60, todo o santo dia; o segundo e o terceiro nas paredes dos respectivos comércios, ostentavam (assim tipo oito-em-cada-dez) nos já distantes dias da minha meninice meio lisboeta, meio alentejana os cromos do Caiado, do Zé Águas, do Chico Calado, do Bastos e do Costa Pereira--do mesmo modo que, pouco antes, haviam não menos ufanamente exibido os do Vítor Silva, do Julinho, do Arsénio, do Rogério e por aí fora.
Gente muito 'diferente' eram os "blue collars" que precisamente para "marcar a diferença", não "frequentavam tascas" (só cafés...), tratavam os "graixas" por tu e apenas se dignavam falar com os mesmos para dizerem que queriam 'o serviço' despachado rápido porque tinham ainda muito que fazer...
Ou para chateá-los quanto podiam se o Peyroteo ou o Vasques lhes tinham "feito a vontade" de, na véspera, "ganhar aos vermelhos"...
Identificava-os de algum modo (mesmo aos que não eram propriamente "blue collars" mas sonhavam ou sê-lo ou que os filhos o viessem a ser porque, nesses tempos, deixar de ser "blue collar" dava um "trabalhão" dos diabos e era quase sempre em vão que se tentava dar esse utópico "salto"...) a existência de uma necessidade incrível de não serem, em caso algum, "confundidos" com "os pobres", isto é, de "provarem" (lá está!) que eram "diferentes" e, seguindo escrupulosamente os primaríssimos rituais sociais "pequeníssimo-burgueses" da época, acreditavam não haver melhor nem mais eficaz maneira de alcançar esse sonhado objectivo do que "ser do Sporting".
O barbeiro lá de casa era "do Sporting" (tinha um filho a tirar o Curso Comercial à noite, o Hermenegildo...); o merceeiro da frente, o sr. Teles, era "do Sporting" (também, o filho dele estudou à noite, tirou o Curso Comercial e foi trabalhar para um banco) e assim por diante.
Já o homem da taberna era "do Benfica", o empregado da garagem defronte era "do Benfica", o ardina ao qual o meu Pai comprava todos os dias o "Popular" (o "Malarranha" quue "era coxo das duas pernas" e me fazia uma inveja incrível porque "sabia apesar disso subir e descer dos eléctricos em--furioso--andamento...) era (claro!) "do Benfica".
No Colégio, o Pinto (que morava na Rua Maria, numa moradia própria e era incrivelmente "peneirento") era "do Sporting" e na 'minha sala' só eu, o Frade, o Zé Fernando Ribeiro (um grande Amigo e um belo maluco que ainda um dis destes me telefonou e não vejo 'há séculos'!...) e o Cordeiro éramos "do Benfica": o Colégio, é preciso dizer, era o Académico, na Álvaro Coutinho e isso explica, afinal, se calhar, tudo...
Ser de um destes clubes, do Benfica ou do Sporting (juntamente com o Belenenses de outrora, os únicos clubes verdaderamente nacionais, entre nós) representava, de algum modo, uma espécie de embrião de uma posição (e até de uma "pequena" consciência!) de classe que cada um ia de passo assumindo--ou começando, em qualquer caso, a assumir e a possuir.
Bom mas isto tudo para dizer que, afinal, mesmo se eu não preciso, como disse, de "alibis" para gostar de "bola" (ou do Benfica, pronto!) fui dar, um dia destes, no "Público" com um artigo sobre o Festival de Cannes onde se falava do filme que o Kusturitcha realizou sobre esse grande maluco (esse "bom malandro", como diria o Zambujal, outro fulano de Moura...) do Maradona.
E lá se diz, numa espécie de super-eco do meu "benfiquismo social"; do meu modo "social" ou "sociológico" e "cultu(r)al" de "ser benfiquista" que, para o Kusturitcha (e aparentemente para o próprio Maradona) o golo que ele marcou à Inglaterra com a mão, num Mundial qualquer (eu não ligo a Mundiais: só aos torneios onde "entre" o Benfica, desculpem lá!...) foi "uma 'patifaria' que os pobres fizeram aos poderosos do mundo".
"Tal como [acrescenta o articulista, Vasco Câmara de seu nome", como diziam, "no meu tempo" os locutores, isto é, quando ainda não eram jornalistas mas "apenas", muito menos ambiciosamente, locutores...]; "tal como", dizia, "as suas vitórias ao serviço do Nápoles foram derrotas que o pobre sul infligiu ao rico norte".
Devo dizer que não gosto lá muito de exageros e que, nestas coisas de "ricos" e "pobres" não é muito difícil "escorregar" das melhores intenções para a pior das (impuras e, no fundo, nada "simples"...) demogogias.
Senão mesmo para "pior" ainda...
Seja como for, percebo.
Percebo perfeitamente a perspectiva, o ângulo, do Kusturitcha.
Se, com efeito, por "Inglaterra" dissermos, não tanto (a não ser num plano pura ou impuramente simbólico ou metafórico, entenda-se!) "Sporting" mas seguramente Casal Ribeiro, "regime", Salazar, Tenreiro, canalhice, PIDE, silêncio cúmplice, intolerável prepotência e repugnante cobardia económica, vilania social e política e assim por adiante; se em vez de "rico norte", pensarmos no merceeiro, no barbeiro, no empregadito de escritório (um daqueles que o Redol tão bem descreve no excelente livro que é o seu "Anúncio"); no contínuo servil ou no não menos silencioso e servil funcionário da repartição--todos eles gente que mais do que mudar um regime económico-político miserável, injusto, cruel, policialmente poltrão e politicamente de uma "cinzentice" hipócrita e farisaica, pretendiam em silêncio, ocupar um lugarzinho mesmo muuuuuito insignificante e, em termos genéricos, desoladoramente pequenino nele, teremos, então, a imagem clara, nítida, precisa do meu "benfiquismo sociológico" ou "cultu(r)al" e (pronto, está bem, eu reconheço!) "político".
Deliberada, assumida e firmemente (também) político!
Obrigado, "velho" Emir.
"Gracias", "ganda maluco" de Maradona!
E que se "lixem" os ricos, não é, pá que a gente acima de tudo "queremos" é, mal ou bem, como vamos podendo ou nos deixam, estar vivos, com aquele mínimo de dignidade e carácter de que não prescindimos em caso algum mas que nos recusamos sempre a monopolizar.
E o resto "são bifes", "vanitas vanitatis", como dizia o Asterix...
[Na imagem: Luís Piçarra, no apogeu da sua (acidentada) vida e da sua (magnífica) carreira]
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