domingo, 18 de janeiro de 2009

"Like The Man Said: An Image Is Worth A Thousand Words..."


Palestinian women and children:

You needn´t be afraid of Cancer!

(Not for the moment anyway: the bastards have suspended the military offensive for a while!...)

domingo, 11 de janeiro de 2009

"Toda A Indignação E Revolta Do Mundo São Ainda Insuficientes!..."


O difícil é determinar o que mais abominar: se a contumaz, obstinada, selvajaria judaica, se a imperdoável cobardia universal!...

Dia a dia, o crime consuma-se, a barbárie intensifica-se e triunfa, a carniça avança um pouco mais em direcção a um sangrento "esplendor" final impossível sequer de imaginar--por entre farisaicas declarações de "escandalizada repulsa" e hipócritas "indignações" de pacotilha que apenas merecem que deixemos de uma vez por todas de escutá-las!

Uma coisa tragicamente se "salva", em derradeira instância, da apocalíptica, indiscriminada sangueira levada a efeito em Gaza pelos tanques e aviões israelitas: a certeza de que agora ficamos todos finalmente a poder conhecer sem margem para quaisquer dúvidas quem são e onde se encontram de facto e--pior ainda!--de... "Direito" (muito imperfeita e muito incompletamente escondidos, aliás!): num suposto governo que estes crimes ordena, num alegado parlamento que os cauciona, numa inexistente "Europa" que, com eles na prática pactua e de todos eles é cúmplice.

..............................................................................

Nos E.U. não falo: há muito que, em termos de verdadeira Civilização e de uma minimamente consistente defesa dos valores da Liberdade, da Democracia e do Humanismo deixaram de existir: fica a "confissão" feita por quem melhor do que ninguém podia fazê-la.
Atente-se na imagem...

"Prometheus Bird Got It All Wrong, This Time!..." ['collage' do titular do blog]

sábado, 10 de janeiro de 2009

Bens públicos, disfuncionalidades privadas

Há muito que venho argumentando (como posso e onde posso) em defesa da ideia que a mim me parece básica, primária mesmo (e em vários sentidos) de que a repotenciação pós-moderna da divisão da sociedade em classes, a sua actualização ou "aggiornamento" funcionais, sem deixar de ser in/essencialmente de natureza económica, assenta hoje, mais do que nunca, naquilo que, seguindo uma terminologia caracteristicamente marxista, poderíamos chamar a "propriedade dos meios de produção social de conhecimento e/ou informação".
Nego, também, de acordo com a observação que faço do modo como a propriedade do saber está hoje (muito desigualmente) distribuída no mundo que seja possível que, no contexto do chamado "mundo ocidental", haja hoje verdadeiras "sociedades do conhecimento".
Não podem estas existir, como é óbvio, num paradigma de sociedade (ou de "societação", na minha semântica pessoal...) em cujo seio aquele mesmo conhecimento (ou aquela "informação") se acham "socializados"--"democratizados", grafam alguns mais ambiciosos...-- de um modo que, porém, em todos os aspectos, social, política e até filosoficamente injusto na medida em que deixa, por um lado, à generalidade da sociedade a propriedade dos produtos inertes e, num certo sentido, passivos, completamente inorgânicos da 're/produção social de conhecimento' enquanto que reserva, por outro, a uma elite económico-financeira e política a do acesso directo aos dispositivos de transformação activa e efectiva da realidade em "valor"--através da conversão... "transpolítica" dos meios de acesso directo ao real em propriedade, tão estrita quanto sobretudo estreitamente, privada.

Processo no contexto do qual, vá-se dizendo, desempenha um papel particularmente relevante (pelas piores razões, porém) como também digo noutro lugar, a escola "pública" neo-burguesa, i.e. àquela que na prática se instituíu nas sociedades "ocidentais" a partir do 'instante da História' em que a burguesia, ocupada substantivamente a propriedade que havia sido da aristocracia deposta, determinou, por isso, restaurar, no in/essencial, anteriores paradigmas de "diálogo" ou de "dialogação" (anti) social, desfazendo-se, de passo, da companhia das classes populares (desde logo, da do proletariado, sobretudo urbano das grandes cidades) que até aí havia colaborado directamente com ela na condução do processo revolucionário de recomposição e correcção do próprio curso da História--em França mas não só.

O processo a que me refiro de apropriação (ou de "enclosing") privado(s) da propriedade social vem já de trás, como é evidente, mas sofreu, como também é sabido, um verdadeiro 'boost', civilizacionalmente decisivo, com a Revolução Industrial na medida em que a propriedade social a ser agora "enclosed", passou a ser, no contexto do processo global de re/produção contínua de Capital, o próprio saber com que esse Capital "é feito" ou de que ele é secundariamente "fabricado".

O que eu digo é que o grande (embora humanistica e politicamente discutível...) "mérito" do capitalismo moderno (e pós-moderno!) foi o de ter convertido, a prazo, aquele que era um paradigma estruturalmente desigual e injusto de organização, económica, social, política e até civilizacional, numa espécie de modelo secundariamente afirmativo de "societação" levando a que um sistema de exploração e administração económico-financeira e até super-estruturalmente civilizacional que se "expressava politicamente" de forma electiva no autoritarismo--no fascismo com certeza (como o demonstra o estudo cuidado da génese teórica dos regimes políticos de "capitalismo total" surgidos na Europa nos anos vinte do século passado)--a poder evoluir tranquilamente para a "democracia".

Para a democracia diz o próprio "sistema" através dos seus porta-vozes e serviços de "relações públicas" institucionais e teóricos; para a "demomorfia instrumental" que hoje, estr(e)itamente associada a uma sociedade (cada vez mais vagamente e mais dificilmente, de resto!) "de consumo" nas sociedades persistentemente periféricas como a nossa, passa geralmente por tal, digo eu...

Dou dois exemplos:

O primeiro vem de um texto de Vital Moreira divulgado no jornal "Público" (onde escreve o conhecido constitucionalista, agora que descobriu que tudo o que antes defendera ou dissera defender estava errado) e que ele intitulou (como escassa originalidade, aliás) "Bens públicos, abusos privados".

Aí se dedica ele especificamente a invectivar com particular energia arguentativa e verbal os campistas e/ou auto-caravanistas que por toda a costa portuguesa causam estragos, sem dúvida, significativos na paisagem.

Ora, o que eu digo é: que esses, como tantos outros, nos parques, jardins, etc. de todo o País causam estragos consideráveis, estragos alguns deles seguramente de muito dificilmente reparação, não está, como é óbvio, em discussão: causam mesmo, ponto final.

Agora, o que sim está em discussão é se os argumentos e os fundamentos aduzidos por Vital Moreira para invectivar os usos microcosmicamente anti-sociais do património público paisagístico não deviam , por maioria de razão, ser tornados extensivos a todos quantos esses mesmas danos e estragos causam a uma dimensão não já micro- mas macro-cósmica na propriedade social e política genérica, total, enquanto tal.

Ou seja: um homem, muitos homens, homens e mulheres, comprometem a estabilidade de uma falésia e são "um exemplo de degradação e depredação dos bens públicos de uso colectivo em Portugal", como escreve V. Moreira; mas um núcleo, uma mancheia, um número substantivamente menor mas incomparavelmente mais perigoso de indivíduos erigido em poder político efectivo subscreve um contrato ruinoso para a construção, por um grande grupo privado de construção civil, de uma ponte, de um aeroporto, de uma qualquer "cidade judiciária" (que nunca chega, todavia, a ver a luz do dia) ou de um "TGV" (um TGV que, de resto, muito pouca coisa permite distinguir de uma espécie de réplica móvel do "Vaticano" re/construído numa selva qualquer, como aquela em que o ditador marfinense Houphouët Boigny decidiu erigir no seu neo-colonizado e miserável país uma fotocópia da Basílica de S. Pedro de Roma); um núcleo, pois, dizia, de indivíduos com poder subscreve o tal contrato; a "cidade judiciária" não se faz e é preciso "indemnizar" chorudamente o não-construtor das "coisa" com uns valentes milhões saídos da propriedade pública (que, no caso dos caravanistas era apenas, como diz Moreira, de uso público); ou que, no caso da ponte se faz mesmo com o argumento de que vai permitir resolver os estrangulamentos de uma outra situada um pouco mais abaixo mas não resolve rigorosamente coisa alguma, limitando-se a ser, isso seguramente, um fabulososo negócio de construção civil; tudo isso (não?) tem lugar e, ainda assim... nada acontece a quem, por incompetência ou por outra coisa qualquer, dilapidou património público e geriu de forma gritantemente ruinosa a administração da propriedade não menos pública.

E não se trata aqui, entendamo-nos, nem de desculpabilizar o uso anti-social dos bens colectivos como o litoral do País nem de fazer qualquer tipo de demagogia: eu há muito que venho defendendo que àquilo a que chamamos vulgarmente Democracia em Portugal faltam dispositivos verdadeiramente essenciais de controlo realmente democrático e de responsabilização política em tempo tão real quanto possível dos agentes do poder representativo.
E esse é que é o grande problema, a origem de todos os problemas avulsos, aquilo que é essencial considerar antes de começarmos a imprecar contra estes que mais não configuram, pois, do que meras consequências.

Defendi (e continuo tão veemente quanto convictamente a defender!) a criação de uma "Mesa" ou "Tribunal de Fiscalização e Convalidação Política", concebido à imagem do Tribunal Constitucional ou do de Contas, onde (volto a dizer) os programas dos agentes políticos, individuais ou colectivos, concorrentes a eleições, tivessem obrigatoriamente de ser depositados assim como um plano tecnicamente argumentado e sustentado dos modos concretos de pô-lo em execução na prática, de modo prévio relativamente ao acto ou actos eleitorais respectivos.

Preconizo a introdução deste dispositivo, como também, já por diversas vezes defendi, a fim de evitar que algo que se situa no próprio núcleo activo do específico democrático--i.e. a cedência circunscritamente instrumental do exercício material do poder político a grupos muito precisos de cidadãos especificamente mandatados para representar instrumentalmente a vontade colectiva pudesse, na prática, derivar, de forma excrescencial (des!) estruturalmente perversa (como acontece, de resto, nas "nossas" democracias ocidentais em geral) para a cedência objectiva do próprio poder, transformando assim o que era originalmente suposto ser um regime realmente representativo em formas objectuais de "despotismo (supostamente!) esclarecido" ou mesmo, no caso perversíssimo das maiorias "absolutas", em modalidades materiais de "totalitarismo plebiscitário" ou de "autocracia institucionalmente negociada e consentida".

Não há, pois, repito, no que digo qualquer intuito im/puramente demagógico, a emissão de quaisquer "palpites" gratuitos, desprovidos de substanciação teórica e argumentativa.

Não!

O que eu digo é muito claro: é que, voltando a reportar-me directamente ao texto do "Público", estragar a comparativamente "pequena" (microcósmica, em todo o caso) propriedade colectiva, seja sob que forma for, não configura, na realidade, um qualquer acto ou conjunto de actos avulsos, soltos, isolados, fora de uma linha de perversão democrática nuclear objectiva (de facto mas também de direito) que vem já muito de trás e que se inicia logo no modo como o partido a que Vital Moreira dá hoje, pelos vistos, o seu apoio concebe (chamemos-lhe:) teoricamente a democracia (o desenho institucional da "democracia") e o põe, em seguida, em prática.

É, pois, toda uma praxis concreta mas é, de igual modo (e sobretudo) a montante uma Teórica global que estão aqui em causa.

Uma suposta "democracia" que não se vigia nem se auto-regenera continuamente em tempo real (ou, no mínimo, em tempo tão real quanto possível); que não pune os grandes actos de "abuso [deliberado ou simplesmente negligente e incompetente] dos bens públicos"; que faz deles... "políticas" e (mais grave ainda!) "Política" ordinária; cuja Cidadania não considera absolutamente necessário intervir sempre que têm lugar abusos frequentes, alguns deles verdadeiramente escandalosos do poder instituído; uma "democracia" que não tem meios ou alfaias institucionais específicos para fazê-lo; que se fica pela punição (ou pelo desejo mais ou menos abstracto e mais ou menos "moral" de punição, como sucede no artigo de Vital Moreira) dos actos de irresponsabilidade e depredação em comparativamente pequena escala, deixando que os de "grande escala" passem tranquilamente impunes ou fiquem entregues à "penalização" objectivamente "moral" das eleições; uma... "democracia" assim entendida e assim realizada é uma "democracia" que sonha levianamente 'endireitar a sombra da vara', deixando, porém, esta virtualmente intacta e sempre, na própria base, literalmente incólume.

É, em suma, repito, uma "cultura" de total "passividade plebiscitária" que começa, nunca será demais repeti-lo, necessariamente muito antes dos inevitáveis acidentes mais ou menos 'microcómicos' que está fatalmente condenada a gerar.

.................................................................................

Volto ao início destas reflexões: a Revolução hoje em dia (Vital Moreira, que, pelos vistos, se cansou ou se fartou de "esperar por ela" e de preconizá-la discordará mas paciência!...); a Revolução, hoje em dia, ia dizendo, passa (passa, aliás, a meu ver, de forma verdadeiramente central, verticial mesmo) por "tudo quanto seja" subverter radicalmente o próprio modelo (a Teórica e a prática do próprio modelo) de propriedade ou de 'proprietação' política do conhecimento; passa por subverter no in/essencial a propriedade politicamente sustentada dos meios de re/produção social de conhecimento--por exemplo, denunciando de forma pública o papel in/essencialmente conservador, senão mesmo aberta--sistemicamente!--reaccionário da Escola dita ainda "pública" neo-burguesa e pós-moderna, destinada a recolher os "estilhaços" inertes do saber económica e financeiramente desactivado pelo Capital privado no seu papel neo-liberal de gerar "valor" ou "converter-se im/pura e simplesmente nele").

E dou aqui o prometido segundo "exemplo": graças à generosidade e à lucidez da bibliotecária da Biblioteca Municipal da cidade onde vivo, houve em tempos possibilidade de organizar-se um modestíssimo "Cine-clube na Biblioteca" onde fosse possível, para além de se "consumir" Cinema, "refazer critica e analiticamente" por inteiro esse mesmo Cinema enquanto forma de estar esclarecida e vigilantemente no mundo de onde esse Cinema (e todos nós! E tudo quanto nos diz, social, cultu(r)al, ideológica e politicamente respeito) provém e é gerado.

O mundo cinematográfico de hoje está, lastimavelmente, marcado, em termos genéricos, por uma perspectiva im/puramente imediatista e de mero "consumo" que, a meu ver, reflecte já (lá está!) tessitariamente o próprio projecto que a "sociedade de classes", re/organizada a partir da já referida propriedade política dos meios de produção conhecimento, pretende que, enquanto sociedade ou "paradigma de societação", tenhamos para o 'desenho' estável da nossa própria "consciência" individual e colectiva, ou seja, do nosso modo caracteístico de delinear um paradigma estável de "inteligência cultu(r)al" e mesmo genericamente "civilizacional" da realidade.

Hoje, reapropriar-nos 'revolucionariamente' desses meios de acesso livre e directo ao real (isto é, de redescobrir os próprios fundamentos teóricos e práticos de uma autêntica Democracia; de uma Democracia verdadeiramente moderna e actuante) significa desde logo (e foi nessa perspectiva 'subversiva' concreta e específica que concebemos, a Dra. Elvira e eu próprio, o nosso cine-clube) reflectir seriamente (fomentar por todas as formas possíveis a reflexão) sobre o próprio modo como o Cinema e a Arte em geral operam no quadro dessa nova 'divisão social da propriedade do Conhecimento e dos meios possíveis de Conhecer'.

Significa pensar realmente não só o Cinema enquanto meio, enquanto 'medium' de Conhecimento e de expressão estética, mas também a nossa relação íntima e (des) estrutural genericamente com a Arte e a Cultura de que ele é parte integrante e essencial.

Lá está! Hoje em dia, as pessoas, já (des) estruturalmente marcadas pelo desejo politicamente induzido de consumir, preferem claramente os produtos enquanto tal da "fabricação" (e uso aqui o termo deliberadamente, ham?) de expressão genericamente estética a qualquer modalidade reconhecível de concretização paradigmas autónomos e pessoais de relação, intelectual e intelectivamente saudável, com a própria produção de pensamento e consciência (de Estética enquanto "inteligência específica da realidade") operada a partir da própria criação cinematográfica como tal, i.e. como acto (ou em termos genéricos: como acticidade) estrita mas não estreitamente de Cultura (e também--porque não?!--de Política, de Civilização e "por aí fora").

O que propúnhamos era, então, neste quadro crítico preciso, que se re-perspectivasse, daquele ponto de vista criticamente integrante e orgânico, idealmente, todo o nosso olhar cultu(r)al e político sobre o real de modo a que sempre que nos viessem dizer, como agora, com gritinhos de indignação e esgares de virgindade escandalizada, que um fulano qualquer tinha "descascado" ou ajudado a "descascar" uma falésia em Sines ou em V. N. Milfontes ("esquecendo-se" de referir que, no mesmo exacto instante histórico e político, um outro, confortavelmente instalado no próprio coração do poder, havia impunemente depredado o património colectivo, decidindo, sem ouvir no fundo ninguém--a não ser a vozinha interior que lhe sussurrava que isso iria seguramente ser um excelente negócio para alguém) a construção de uma ponte que serve por dia, por mês, por ano "meia dúzia" de pessoas (além de à noite "dar um jeitão" para que um bando de arruaceiros motorizados possa pôr regularmente em risco a vida da comunidade, de tal modo a "coisa" se revelou, além de caríssima, globalmente inútil); quando, pois, nos viessem declarar com indignado e púdico horror que estava para rir uma falésia (e é horrível que por toda a parte possam ruir tão impune quanto continuamente falésias, não haja dúvidas relativamente isso!) enquanto um qualquer fulano instalado, como disse, no próprio coração do poder determinava, então, que se construisse um "quasi elefante branco" que, afinal, não resolveu nada daquilo que era suposto resolver em termos da redistribuição equilibrada dos fluxos de tráfego ou ordenava a construção do tal TGV que é, repito, para muitos, a resposta "europeia" pós-moderna ao "Vaticano na selva" de Boigny; o que propúnhamos, era, pois, concluindo o meu raciocínio, que sempre que o atrás descrito acontecesse de imediato pudesse logo perceber-se a estreita ligação que existe entre o modo como as classes (e o poder) estão hoje-por-hoje (des) organizados e um modelo de sociedade assente, em última instância, (im) precisamente na des-organização sistemática (sistémica!) dos nossos modos cultu(r)ais e políticos de (não!) nos relacionarmos, enquanto indivíduos e enquanto sociedades com a realidade à nossa volta.
E tudo o resto é folclore.
[Imagem do topo extraída com vénia de "afavanomeubolo.blogspot.com"]

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

"Uma reflexão pessoal sobre... «pornografia humanitária» e «terrorismo civilizacional»..."


Num "Diário de Notícias" de Janeiro de 2009 (o de 09.01.09) tomo conhecimento do seguinte escândalo: um madeirense que ganha a vida aos pontapés (tem a criatura em causa o nome próprio, ao que parece, de Ronaldo e dizem também que é "Cristiano", isto é, "cristão"...) estampou um Ferrari de 350.000 Euros que terá, segundo o jornal, sido a prenda que o cidadão em causa decidiu oferecer este Natal a si próprio.

Não vou comentar (mais do que já fiz designando-a por "escandalosa") a natureza (e em particular o "valor"!) da prenda que o tal madeirense do pontapé fácil decidiu oferecer a si próprio--muito em especial num tempo como o que atravessamos em que, em Portugal (o Portugal "sucático": "sucático" de "sucata", sucata política, sucata ética, sucata civilizacional e por aí fora; Portugal de onde o tal fulano, madeirense de origem é ainda tecnicamente natural), o desemprego atinge níveis que começam, aliás, já a pôr em causa a própria Democracia, isto é, desde logo, a própria legitimidade, já nem digo: política mas até simplesmente semântica de se continuar a pensar que este é, realmente, o tal apesar de tudo menos mau dos sistemas políticos...

[O menos mau, este?

A continuar tudo como está, não faltará muito para que a questão deixe de poder pôr-se em termos quase académicos (e mesmo "morais") de "bons" e "maus" sistemas políticos para passar a ter de pôr-se em termos de sistemas políticos "habitáveis" e de sistemas políticos pura e simplesmente inabitáveis--e até (literalmente!) mortais].

Bom mas dizia eu que o tal "Cristão" Ronaldo estampou o Ferrari e despachou de passo os 350.ooo que o brinquedo (que vá-se dizendo "ficou", de acordo com o jornal que cito, "irreconhecível") lhe custou.

Ora, a minha pergunta é: tratou-se de um caso sem solução?

De difícil solução, ao menos?

A resposta (dada ainda pelo "D.N.") permite-nos ser categóricos: NÃO!

A verdade é que se, feitas as contas, os senhores ou eu (se tivesse sido um de nós a estampar uma prendinha como o que o "Ronas" deliberou--e pôde!-ofertar à sua excelsa pessoa) precisaríamos, caso auferíssemos do chorudo salário mínimo "sucático", de 778 (SETENCENTOS E SETENTA E OITO!) meses sem gastar um "tusto" em qualquer outra coisa fosse ela qual fosse; a verdade, dizia, é que, se assim fosse (e é!) ao bom do "Ronas" bastam-lhe (sentem-se bem, ham?! "Fasten your seat belts and all that sort of thing"!...) 12 (DOZE!) dias para repreencher a garagenzinha da sua mansão pessoal com outro Ferrari novinho em folha!!!

E eu concluo: filmes pornográficos?

São, tendo em conta "casos" de verdadeira obscenidade económico-financeira e até primariamente humanitária, como este, a partir de agora, as transmissões "em directo" dos jogos do Manchester United--senão mesmo as que mostrem a selecção portuguesa (com o tal "Ronas" dos 350.ooo lá dentro) em acção...

Só pode!

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

"Sobre «benfiquismo sociológico»..."

Começo por esclarecer que nunca senti a necessidade de me esconder atrás de quaisquer "Grandes Nomes" (Camus, Vinicius, Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, etc.) nem de recorrer ao "alibi" dos "Precedentes Ilustres" de qualquer outra, mais ou menos supostamente intimidatória e inatacável natureza, para (re) afirmar o meu gosto pessoal pelo futebol.
Talvez nem tanto pelo futebol: pelo Benfica.
Por um certo Benfica, em todo o caso.
Ora, do "meu" Benfica já falei noutro ponto deste "Diário".
O que quero dizer agora é que para muitos dos meus Amigos e conhecidos, eu "desvirtuo" substancialmente (e substantivamente?) o futebol porque (segundo uns) o "politizo" em excesso; segundo outros, porque incorro no pecado de "culturalizá-lo" com tanta impropriedade e tanta indevida frequência com que, na opinião dos primeiros, o "politizo".
Talvez, de facto, eu tenha por razões "cultu(r)ais" ou "políticas" um Benfica particular que ou já não existe ou nem sequer chegou, vez alguma, a existir.
A verdade é que não me importa muito: acho que vou ser sempre, até morrer--como o "primo Luís", o Luís Piçarra (cuja foto não desaproveito o ensejo de mostrar, tal como era no apogeu da sua tão brilhante quanto injustiçada carreira quando era, para além de um cantor lírico de vocalidade aveludada invulgarmente dúctil, para muitos, o "Piçarra do Benfica").
["Piçarra do Benfica" que no fim da vida, devorado pelo cancro, sem voz (literalmente sem voz!), arruinado, desencantado e profundamente ferido pela injustiça do total esquecimento em que o seu nome caira, guardava ainda religiosamente a bandeira vermelha do Clube, par amortalhar-lhe o corpo, incrivelmente debilitado, no momento definitivo de baixar à terra]...
Pois para o Piçarra e para mim próprio o Benfica, muito mais do que um clube "de futebol" (ou "de Hóquei" ou de outra coisa qualquer dos mesmos--limitados--âmbito e tipo) era uma "ideia" e mesmo (foi-o durante décadas em segredo, na cúmplice clandestinidade) uma espécie de "causa" onde cabia, desde logo (daí dizerem que eu "culturalizo" e/ou "politizo" em excesso a minha relação subjectiva profunda com o Clube) uma postura muito específica relativamente aos ricos, aos poderosos e (porque não?) também (e num certo sentido, sobretudo) aos tolos que imaginavam escapar a essa condição execrável de tolos (e, já agora, de pobretanas, de "gente supostamente menor" e de pelintras...) "colando-se" mais ou menos "lateralmente" aos clubes e instituições em geral que, de um modo ou de outro, para muitos, simbolizavam justamente a Afluência e o Poder.
O Sporting foi, durante muito tempo (à semelhança, aliás, do que em Espanha se passa com o Athletic de Madrid, o Ex-Atlético Sport Aviación, o verdadeiro clube "do" franquismo, indesejabilíssimo estatuto esse injustamente atribuído ao grande Real) o exemplo ou o "caso" paradigmático desse tipo de clube.
Era o "clube do Sr. Visconde" (que o fundou e lhe imprimiu, desde aí, um registo "aristocrático" que passou, de algum modo, a defini-lo no subconsciente colectivo futeboleiro nacional); era o clube "da água quente" (que a tinha nos duches e serviu para nos "roubar" a primeira grande estrela que a modalidade gerou, o Artur José Pereira que, a dado passo, nos deixaria aliciado pelo luxo "bizantino" que sornamente punham ao dispor do seu enorme talento atlético mesmo "ali ao lado").
Depois, por exemplo, que teve sede no Palácio Foz (!!!) aos Restauradores, em Lisboa, o local passou a ser, à época, vulgarmente conhecido (e não é difícil perceber porquê...) pela "agência de empregos"...
Aliás, quem ler as memórias do fabuloso guarda-redes que foi o Carlos Gomes (intituladas "O Jogo da Vida": o Carlos Gomes em termos de destino trágico foi um pouco, salvaguardas algumas diferenças importantes, "o Piçarra do Sporting") facilmente confirma quanto digo e que, ao tempo, ninguém, de um modo ou de outro, aliás, desconheceria.
É verdade que existiam (e continuam, aliás, a existir) alguns que, por tolice ou má fé, gostam de identificar o "meu" Benfica com o "clube do regime"--entendendo-se por "regime" (é preciso lembrá-lo às gerações que nasceram depois da queda da ditadura e que, por esse motivo, desconhecem as subtilezas de uma semântica politicamente prudente que vigorou entre nós durante quase meio século); entendendo-se, pois, dizia, por "regime" o fascismo.
A realidade é que o Benfica era realmente o Clube "do" engraixador, "do" tasqueiro da Mouraria ou de Alfama (ou dos Anjos, se faz favor!) e "do" sapateiro "de vão de escada".
O primeiro na caixa-da-escova-e-da-graixa, isto é, na "engraixadoria" portátil com que percorria incansavelmente os cafés e as estações de combóios dessa modorrenta "Lisboínha" pós-rural de 50 e 60, todo o santo dia; o segundo e o terceiro nas paredes dos respectivos comércios, ostentavam (assim tipo oito-em-cada-dez) nos já distantes dias da minha meninice meio lisboeta, meio alentejana os cromos do Caiado, do Zé Águas, do Chico Calado, do Bastos e do Costa Pereira--do mesmo modo que, pouco antes, haviam não menos ufanamente exibido os do Vítor Silva, do Julinho, do Arsénio, do Rogério e por aí fora.
Gente muito 'diferente' eram os "blue collars" que precisamente para "marcar a diferença", não "frequentavam tascas" (só cafés...), tratavam os "graixas" por tu e apenas se dignavam falar com os mesmos para dizerem que queriam 'o serviço' despachado rápido porque tinham ainda muito que fazer...
Ou para chateá-los quanto podiam se o Peyroteo ou o Vasques lhes tinham "feito a vontade" de, na véspera, "ganhar aos vermelhos"...
Identificava-os de algum modo (mesmo aos que não eram propriamente "blue collars" mas sonhavam ou sê-lo ou que os filhos o viessem a ser porque, nesses tempos, deixar de ser "blue collar" dava um "trabalhão" dos diabos e era quase sempre em vão que se tentava dar esse utópico "salto"...) a existência de uma necessidade incrível de não serem, em caso algum, "confundidos" com "os pobres", isto é, de "provarem" (lá está!) que eram "diferentes" e, seguindo escrupulosamente os primaríssimos rituais sociais "pequeníssimo-burgueses" da época, acreditavam não haver melhor nem mais eficaz maneira de alcançar esse sonhado objectivo do que "ser do Sporting".
O barbeiro lá de casa era "do Sporting" (tinha um filho a tirar o Curso Comercial à noite, o Hermenegildo...); o merceeiro da frente, o sr. Teles, era "do Sporting" (também, o filho dele estudou à noite, tirou o Curso Comercial e foi trabalhar para um banco) e assim por diante.
Já o homem da taberna era "do Benfica", o empregado da garagem defronte era "do Benfica", o ardina ao qual o meu Pai comprava todos os dias o "Popular" (o "Malarranha" quue "era coxo das duas pernas" e me fazia uma inveja incrível porque "sabia apesar disso subir e descer dos eléctricos em--furioso--andamento...) era (claro!) "do Benfica".
No Colégio, o Pinto (que morava na Rua Maria, numa moradia própria e era incrivelmente "peneirento") era "do Sporting" e na 'minha sala' só eu, o Frade, o Zé Fernando Ribeiro (um grande Amigo e um belo maluco que ainda um dis destes me telefonou e não vejo 'há séculos'!...) e o Cordeiro éramos "do Benfica": o Colégio, é preciso dizer, era o Académico, na Álvaro Coutinho e isso explica, afinal, se calhar, tudo...
Ser de um destes clubes, do Benfica ou do Sporting (juntamente com o Belenenses de outrora, os únicos clubes verdaderamente nacionais, entre nós) representava, de algum modo, uma espécie de embrião de uma posição (e até de uma "pequena" consciência!) de classe que cada um ia de passo assumindo--ou começando, em qualquer caso, a assumir e a possuir.
Bom mas isto tudo para dizer que, afinal, mesmo se eu não preciso, como disse, de "alibis" para gostar de "bola" (ou do Benfica, pronto!) fui dar, um dia destes, no "Público" com um artigo sobre o Festival de Cannes onde se falava do filme que o Kusturitcha realizou sobre esse grande maluco (esse "bom malandro", como diria o Zambujal, outro fulano de Moura...) do Maradona.
E lá se diz, numa espécie de super-eco do meu "benfiquismo social"; do meu modo "social" ou "sociológico" e "cultu(r)al" de "ser benfiquista" que, para o Kusturitcha (e aparentemente para o próprio Maradona) o golo que ele marcou à Inglaterra com a mão, num Mundial qualquer (eu não ligo a Mundiais: só aos torneios onde "entre" o Benfica, desculpem lá!...) foi "uma 'patifaria' que os pobres fizeram aos poderosos do mundo".
"Tal como [acrescenta o articulista, Vasco Câmara de seu nome", como diziam, "no meu tempo" os locutores, isto é, quando ainda não eram jornalistas mas "apenas", muito menos ambiciosamente, locutores...]; "tal como", dizia, "as suas vitórias ao serviço do Nápoles foram derrotas que o pobre sul infligiu ao rico norte".
Devo dizer que não gosto lá muito de exageros e que, nestas coisas de "ricos" e "pobres" não é muito difícil "escorregar" das melhores intenções para a pior das (impuras e, no fundo, nada "simples"...) demogogias.
Senão mesmo para "pior" ainda...
Seja como for, percebo.
Percebo perfeitamente a perspectiva, o ângulo, do Kusturitcha.
Se, com efeito, por "Inglaterra" dissermos, não tanto (a não ser num plano pura ou impuramente simbólico ou metafórico, entenda-se!) "Sporting" mas seguramente Casal Ribeiro, "regime", Salazar, Tenreiro, canalhice, PIDE, silêncio cúmplice, intolerável prepotência e repugnante cobardia económica, vilania social e política e assim por adiante; se em vez de "rico norte", pensarmos no merceeiro, no barbeiro, no empregadito de escritório (um daqueles que o Redol tão bem descreve no excelente livro que é o seu "Anúncio"); no contínuo servil ou no não menos silencioso e servil funcionário da repartição--todos eles gente que mais do que mudar um regime económico-político miserável, injusto, cruel, policialmente poltrão e politicamente de uma "cinzentice" hipócrita e farisaica, pretendiam em silêncio, ocupar um lugarzinho mesmo muuuuuito insignificante e, em termos genéricos, desoladoramente pequenino nele, teremos, então, a imagem clara, nítida, precisa do meu "benfiquismo sociológico" ou "cultu(r)al" e (pronto, está bem, eu reconheço!) "político".
Deliberada, assumida e firmemente (também) político!
Obrigado, "velho" Emir.
"Gracias", "ganda maluco" de Maradona!
E que se "lixem" os ricos, não é, pá que a gente acima de tudo "queremos" é, mal ou bem, como vamos podendo ou nos deixam, estar vivos, com aquele mínimo de dignidade e carácter de que não prescindimos em caso algum mas que nos recusamos sempre a monopolizar.
E o resto "são bifes", "vanitas vanitatis", como dizia o Asterix...
[Na imagem: Luís Piçarra, no apogeu da sua (acidentada) vida e da sua (magnífica) carreira]

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

"A Minha Mais Recente Colagem" [Tributo ao fascínio infantil pelos contos de duentes, de fadas, etc.]


"Comentário Político Sucinto..."


"A Viagem de Ulisses" ['collage' de Carlos Machado Acabado, originalmeente publicada em "Um Não- Alexandre Onírico"]"


"It's Nice To Have A Shadow..." ['collage' de Carlos Machado Acabado sobre uma tela de.../republicado de "Um Não-Alexandre Onírico"]"

"The 'divine' Marquis" [2]

Sobre a espantosa obra do Marquês de Sade, aduzo algumas observações e reflexões pessoais noutros lugares deste "Diário". Gostaria aqui de referir apenas, de modo específico, "Justine" e sobre ela tecer algumas considerações em especial.
Ora, é preciso dizer que "Justine" é uma obra interessantíssima, não propriament unitária e "orgânica" (essa é, pode dizer-se, uma característica da escrita de de Sade e, de algum modo, também na prosa ficcional do seu século) da qual o seu, noutros lugares já citado, biógrafo, Geoffrey Gorer escreve (em "The Life And Ideas Of The Marquis de Sade", por exemplo que "Aline et Valcour", é uma obra que "slightly pruned could stand against any other product of its country and century"--op. cit. página 70--ou, a propósito de "Les 120 Journées de Sodome", que a "galeria de retratos" que a obra inclui "is an astound performance, as a piece of writing hardly ever equalled", loc. cit. página 73); é preciso dizer, comecei atrás a aduzir, que "Justine" de de Sade é uma obra interessantíssima cuja "polipolaridade narracional" 'herda' por exemplo da picaresca espanhola e dos seus ecos em França (recordemos, desde logo, o "Gil Blas de Santillane") a característica descentralidade que define a economia desta, sendo que (é uma opinião estritamente pessoal, tanto quanto posso afirmar) há, a meu ver, no modo como o pícaro "puro", por um lado e de Sade, por outro, concebem a inorganicidade torrencial do 'conto' um reflexo subjeccional da própria desordem histórica e social do tempo em que escrevem.

Tal desordem pode ser entendida (ou, no mínimo, considerada em tese) como constituindo um modo de aperceber mais ou menos inconscientemente e, em seguida, em termos concretos, de representar em literatura a inquietação e a subversão da própria consistência e da solidez histórica, social, política, em volta, no caso espanhol próprios de uma sociedade que (embora o século seja "de ouro"...) se vai lentamente desintegrando e, no caso francês, vai criando, uma a uma, afinal, todas as condições, objectivas e subjectivas, para a Revolução, como também nota Gorer, falando especificamente a propósito de "Aline et Valcour".

Este um aspecto que gostaria de referir aqui de modo particular.

Outro diz respeito ao modo específico como "Justine" re/trabalha minuciosamente, até certo momento da obra de forma dificilmente ignorável mas conferindo-lhe uma fortíssima componente de carnalidade (eu diria: utilizando todas as partes e funções do corpo, do indivíduo como corporalidade que é a grande 'descoberta concepcional' do século XVIII) o motivo central do "Candide" de Voltaire.

No fundo, já Camões entre nós (outro homem da "dissolução civilizacional", muitas vezes reduzido à condição redutora de... 'simples' "épico" e, pior ainda, de "épico de serviço"...) descobrira o que no mundo em volta havia de profundamente inquietante e inessencial "desconcerto" reflectindo-o, de algum modo (de modo incompletamente consciente?) na sua própria visão amargurada e, às vezes (vou ser deliberadamente provocatório...) pré-patriciano de amor'.

O discurso camoneano sobre "o desconcerto do mundo" "está todo" em de Sade e seguramente está-o em "Justine". Vou citar apenas um exemplo: debatendo com a própria Justine o tenebroso plano de levá-la a cometer um crime, discorre o perverso Bressac: "Oh ma chère Thérèse (...) comme les prosperités pleuvent sur moi! Je te l' ai dit souvent, l' idée d' un crime, ou son exécution, est le plus sûr moyen d' attirer le bonhrur; il n' en est plus que pour les scélerats", (página 85 da edição 10/18 de 1969).

Repare-se, sobretudo, na total não-inocência crítica daquele "plus" que não está ali em lugar de um simples "pas" certamente por acaso...

Voltando, porém, a Voltaire e a "Candide": é, volto a dizer, difícil não "revê-lo" nesta "Justine" a quem a tradição moral se obstina em guiar, vendo ela constantemente ruir na prática tudo quanto ela "diz" e defende como essência de um modo completamente em crise de conceber a realidade concreta: social, política, etc.

Por último, uma outra particularidade relativa à interacção, à osmose, à... 'porosidade' (e nesse sentido, à riqueza e ao interesse cultu(r)al da obra sadiana) com o seu tempo: refiro-me ao mofo como, se "lá está" Voltaire também está (e mais de uma vez,em mais de um momento) Swift, o satírico Swift de "Gulliver" mas não só. Está-o, diria, no modo sardónico, às vezes inquietantemente cínico como se vai oposicionando perante a 'Ordem' e sobretudo (e, sobretudo!) sobre aqueles que muitos se obstinm ainda em considerar acrítica e apenas mecanicamente como os seus (supostamente inabaláveis) "fundamentos".

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

"Jimbo"

Contra todas as discriminações...

"Os Bonecos de Sto. Aleixo no Cendrev"

Matinée dedicada aos famosíssimos "Bonecos de Sto. Aleixo", em Évora, manipulados pela "rapaziada" do Cendrev.
Tinha sobre eles--sobre os "Bonecos", claro--a informação de que eram "engraçados" e "populares".

Tenho, agora que os vi, outra--muito mais fidedigna e sentida: são, sim, uma verdadeira maravilha!

Um modelo de ingenuidade pícara, uma festa para todos os sentidos--incluindo alguns criados no momento para o efeito deslumbrante de fruir daquele borbulhante espectáculo de singelíssimas travessuras--físicas mas também (e num certo sentido muito específico, sobretudo) verbais.
Um regresso à inocência, candidamente maliciosa (ou maliciosamente cândida) da infância--de todas as infâncias pela "mão" infinitamente engenhosa e sanguínea, vital, do espumante linguajar alentejano, uma das grandes figuras (senão mesmo uma das principais 'personagens'...) do fabuloso espectáculo...

Na sala, adultos e crianças partilharam deliciados durante cerca de uma hora/uma hora e tal a festa deslumbrante da energia bruscamente libertada de indesejáveis peias e de todo o tipo de entraves à pura espontaneidade copiada escrupulosamente da própria vida.

Se tivesse de descrever através de um único termo o que vi e ouvi e saboreei inimaginavelmente deleitado durante a hora-e-tal do espectáculo, creio que não precisaria de muito tempo para achar a expressão perfeita para a ele me referir: um verdadeiro presente de... Reis!

"Pela Liberdade e Pela Cultura..."

Numa época de MacDonald's que é que esperavam?...

"O Cinema Como Contínua Reflexão Sobre Si Mesmo Enquanto Linguagem E Re/organização Sucessiva De Imagens E Ideias Em Número «Teoricamente Finito»"

"The Edge Of The World", Michael Powell, 1937

"The Searchers", John Ford, 1956

"The 'divine' Marquis" [1]


Um dos Autores (grafo com maiúscula intencionalmente...) cuja leitura tão extensiva quanto possível estava há muito reservada para "quando me reformasse" era Sade.

De Sade (des) conhece-se usualmente nome (o último...) e todo um conjunto de vulgaridades, equívocos e puras e simples falsidades que, devo dizer desde já, o seu inequívoco talento de escritor está muito longe de merecer.

A julgar por aquelas das suas obras conhecidas (refiro-me às que não se perderam ou foram destruídas ou roubadas e a que tive até ao momento acesso: até os nazis, cujos campos de extermínio sob inúmeros aspectos antecipou na sua forma física mas sobretudo na sua forma existencial e moral, como Pasolini muito claramente percebeu; até os nazis, dizia, deram uma "ajuda preciosa" para que desconhecêssemos hoje uma parte significativa do que foi a multímoda obra do criador de "Justine"); a julgar, dizia, por quanto destas ficou e se conhece (há ainda, com efeito, obra sua inédita) Sade era um homem de uma profunda humanidade assim como de uma por vezes espantosa modernidade, apta, aliás, a manifestar-se dos mais diversos modos e maneiras.
As suas cartas pessoais, por exemplo (como nota um seu crítico e biógrafo, Geoffrey Gorer in "The Life And Ideas Of The Marquis De Sade", Panther Books Londres, 1934) revelam-nos um homem profundamente marcado pela vida (que, de resto, provocou, muitas vezes, até ao limite do social e do eticamente tolerável, é preciso honestamente reconhecê-lo); obsessivamente perseguido pela sogra, Madame de Montreuil, que dele se serviu para ascender socialmente mas que sempre o detestou; abandonado no fim da vida pelos filhos, um deles autor directo de ulteriores dilapidações da sua obra literária, filosófica e política; longo tempo encarcerado; precursor da Revolução e maltratado por ela enquanto tal mas, de igual modo, pelo respectivo 'refluxo' restauracionista; dilacerado por dúvidas e assolado por inumeráveis contradições pessoais; amargurado pelo roubo constante das suas obras; sempre perseguido pelas consequências fatais dos seus próprios erros e dos seus contínuos excessos; mas sempre um homem espantosamente consciente e lúcido, um sedutor natural, a seu modo, um estóico esclarecido e sofredor.
Muito longe, pois, do simples monstro que a vox populi dele correntemnte fez.

Diz Gorer a dado passo da obra citada: "His qualities as a letter writer are outstanding; in those spontaneous effusions he achieves all the vivacity, the fantasy, the gamut of moods and emotions, the grace and eloquence which always escaped him as a playright".

O que dele li neste âmbito demonstra, com irrefutável clareza, a total justeza destas afirmações: as suas cartas revelam, com efeito e com uma espantosa, por vezes, dolorosa, nitidez um homem de corpo inteiro--"nada más que todo un hombre", como diria Unamuno...--mas um homem que conhecia--de resto, como disse, com uma agudíssima e impiedosa lucidez--toda a extensão das respectivas fraquezas; um homem que se conhece e tenta aceitar-se na sua profunda e não-raro moral existencial e socialmente 'perigosa', diferença; por vezes, como também referi, um estóico mas, sobretudo, um (a expressão impôs-se-me mais de uma vez ao espírito enquanto o lia...) "racionalista desesperado e implacável" que vai lidando com a tragédia da sua vida (quase...) sempre com um rigor sem concessões e uma admiravelmente sóbria dignidade intelectual e crítica, analítica e auto-analítica, que ele, de resto, foi frequentemente capaz de expressar, como também admite, por outras palavras, Gorer (que obviamente o admira) com uma modernidade de estilo e uma quase cirúrgica percepção do essencial que toca, não-raro, as raias da mais sofisticada auto-punição.

O modo como testamenta todos os detalhes do (não!) cerimonial do seu próprio enterro (a juntar à circunstância--não da sua responsabilidade essa, mas, de algum modo... "simbólica", de não lhe terem sobrevivido fisicamente retratos pessoais (1)--por exemplo, configura um incrivelmente lúcido exercício de tácito auto-julgamento e humaníssima--estóica, impiedosa--lucidez.

Deixa, com efeito, Sade testamentado o desejo (não cumprido, de resto, como também refere Gorer) de ser enterrado numa sua propriedade sita em Malmaison, na comuna de Mance, próximo de Epernon desta forma absolutamente arrepiante de frieza e de uma gélida quase indiferença senão mesmo de um subtil desdém por si próprio: "A minha sepultura deve ser cavada no mato pelo homem que trata do campo em Malmaison sob a vigilância do senhor Lenormand que apenas se afastará do meu corpo depois de ele ter sido deposto na cova.
Caso este último manifeste o desejo de ser acompanhado nesta cerimónia por aqueles, de entre os meus parentes e amigos que, sem a mínima demonstração de dor ou luto, quiserem ter a gentileza de prestar-me essa derradeira prova de estima, fica autorizado a fazê-lo. Uma vez tapada a sepultura serão sobre ela plantados carvalhos de modo a que, no futuro, voltando o mato a crescer e ás árvores plantadas a cobrir todo o local como se nada tivesse sido nele mudado, os vestígios da minha campa desapareçam definitivamente da face da terra (...)

E acrescenta, implacável: "Pela minha parte lisonjeio-me acreditando que também a minha recordação será completamente varrida da memória dos homens, com execepção daqueles cujo afecto por mim permaneceu vivo até ao fim e dos quais levo comigo para a cova uma recordação que é feliz".

Chega a arrepiar reler e dolorosamente... "saborear", nos seus arrepiantes, exaustos, desencantados subentendidos, toda a trágica extensão deste impiedoso, tácito, derradeiro libelo acusatório de si próprio, redigido com tão inexorável--indirecta e pressuposta embora--determinação quanto resignada, estóica, frieza.

Sade revela, na primeira parte (no primeiro terço) de "Justine ou Les Malheurs de la Vertu") toda a amplitude do "racionalista desesperado" que, a meu ver, foi e de que atrás falo--atitude que comporta, em meu entender, uma fortíssima componente de quase "pré-existencialista" (pré-dostoievskiana, seguramente) modernidade no modo como usa cirúrgica e mesmo um pouco socraticamente a própria Razão a fim de, ou desmontar as respectivas fragilidades des/estruturais enquanto instrumento de "Conhecimento" humano ou, por outro lado, revelar, em toda a trágica extensão da consciência que do facto é possível formar e ter, o absurdo da própria realidade como tal, do próprio mundo, da realidade enquanto objecto e sistema--a começar por aquele mundo que no imediato concretiza a (in?) capacidade humana para organizar-se como todo coerente e portador de sentido reconhecível.
A "sociedade".


(1) Terá escapado um que viria, posteriormente, todavia a perder-se também, em 1941, durante um saque das tropas alemãs de ocupação.

[Perante a inexistência de efígies escolhi para ilustrar esta 'entrada' a célebre representação de Sarte devida à pena e ao talento de Man Ray]

domingo, 4 de janeiro de 2009

"Brevíssimas notas pessoais sobre a semiótica d' "A Desaparecida" de John Ford"


Um dos meus prazeres cinéfilos muito pessoais (directamente ligados a um tipo de abordagem crítica da obra de Arte muito peculiar a que chamo genericamente "leiturar") consiste em imaginar "A Desaparecida" de Ford como contendo uma espécie de 'rede' subliminar ou, como diria Freud (que é, de resto, com a sua "significada" e muito imaginosa análise de "Hamlet", a fonte de inspiração electiva da prática--e da Teórica, se a há!...--da "leituração" tal como eu próprio me permito concebê-la) um 'referencial (mais ou menos) contínuo e reticular de conteúdo' muito subtilmente latente (cá está o pormenor freudiano!), potenciador do próprio "significado" ou "significados" reais ("ultimate") do filme, dado por três passos, imagens ou, como poderia também dizer-se: por três instantes narracionais básicos:

Um primeiro instante, situado ainda na "abertura" (na "ouverture", em termos musicais e especficamente operáticos) do filme (de facto, logo no próprio genérico do mesmo) quando Ford nos confronta com uma parede de tijolo (figura 1) figurando, simbologicamente, a "casa" (o lugar físico e não-físico para onde se volta sempre de um modo ou de outro, mas também a "casa", por sua vez, como referencia simbológica alargada do próprio Eu) mas também, muito mais abstractamente ainda, a parede aqui introduzida na (pré) narração da obra como expressão visível do "problema", do "bloqueio", da "resistência" ou "solavanco factual e existencial" que vai, a prazo, desencadear a própria necessidade narrativa configurada na "descida ao infernos" do ódio e da vingança que é como quem diz: aos infernos e fantasmas do Eu em (profunda) 'crise'.

É, pois, esse o momento, a circunstância, em que Ford nos coloca subliminarmente perante a emergência brusca do desconhecido, isto é, num certo sentido muito concreto, perante o sinal claro da própria des-ordem (factual, existencial, etc.) como tal--des-ordem essa de onde sairá, após a catabase e/ou consequente progressiva iniciação do indivíduo na própria necessidade vital de lidar praticamente só com a realidade, a um tempo, objectiva mas também subjectiva que o dilacera e de re/organizá-la em seguida, de modo progressivo e até, de algum modo reconhecível, simbologicamente expiatório; é, como digo, esse o momento de re/organizar substantivamente, consigo tão harmonicamente quanto possível "lá dentro", essa mesma realidade cuja estrutura, cuja substância ou cuja possível natureza interior bruscamente se rompeu.
Esse será o instante ou a circunstância do regresso a casa, juntando ambas as referências simbológicas possíveis.

Figura 1

Em seguida, o filme "abre" (figura 2) connosco a vê-lo, da perspectiva de uma das protagonistas que virá a ser assassinadas pelos índios (Martha, a actriz Dorothy Jordan) assistindo de dentro para fora da "casa" à chegada de Ethan.
Ou seja: a parede de que atrás falava "abriu-se" finalmente, deixando-nos ver o exterior, aquilo que ela durante todo o espaço do genérico insistentemente ("tantalizingly", como poderia dizer um falante anglo-saxónico) ocultou.
A realidade.

Há aqui, em meu entender, argumentativamente, uma coincidência objectiva/subjectiva entre o "in" e o "out", entre a "casa" e o "Eu", entre o exterior e o interior da própria realidade, situando o indivíduo pontualmente nesta.
Contextualizando-o.
Articulando-o com e "colando-o a" definitivamente a ela.
O filme, a partir daqui, como disse, "abre".
A casa opera aqui ao mesmo tempo como a projecção subliminar metaforizada do próprio olho. Vamos agora saber o que nos ocultava (através da parede) a própria realidade.
Vamos "entrar" nela ou "sair para" ela.

O homem, "diz-nos" esta (sub) estrutura possivelmente significada não pode permanecer muito tempo parado nem isolado relativamente ao real circundante: tem de relacionar-se activamente com o exterior de si, abrir-se ele mesmo à realidade circundante, começando a usar a sua capacidade para continuamnte re/organizá-la e re/organizar, de passo, o seu 'lugar existencial' nela, a partir do seu arbítrio e da sua natural liberdade.

Figura 2 (Martha/Dorothy Jordan vê John Wayne/Ethan Edwards aproximar-se)

O terceiro instante (figura 3) situa-se no fecho do filme--na imagem simétrica ou simetriforme da anterior, quando é Ethan que nos é apresentado no lugar onde antes estivera a irmã morta.
A ideia é, neste quadro tético, a de que o ciclo 'iniciático' se completou sem, todavia, agora ter de se voltar a fechar.
Pelo contrário: a cena permanece agora aberta atrás de Ethan, sugerindo que o processo que trouxe este do "problema" para a "solução" é um processo aberto, uma circunstâncial existencial (e existenciante) de onde emergem novas possibilidades e novas sugestões de recomposição.
Figura 3

O filme, por outras palavras com tudo quanto ele trouxe de informação existencial e existenciante permanece definitivamente 'aberto', com o 'modelo' de acção representado pelo "caso" de Ethan Edwards em primeiro plano, isto é, entre nós e todas as experiências de res/significação pessoal da realidade possíveis entre os destinatários da "mensagem" do próprio filme.

Concluindo: "sob" a viagem 'iniciática' do filme (que é o filme) é possível admitir que existam, induzidos por uma, possivelmente neste ponto em especial, nada arbitrária montagem (ou, em última instância, "teticamente des-arbitrarizável....) uma série de linhas composicionais (uma rede hipotética de imagemas) mediatamente reconhecíveis, onde, sinteticamente, um reforço do próprio significado último tético do filme está em tese contido.

Está-lo-á?

Como cinéfilo apaixonado e admirador crítico de Ford, gosto de acreditar que sim...

Gosto, por outras palavras, de leiturar o filme deste modo...

"Algumas reflexões sobre o western"

A propósito de "A Desaparecida" ("The Searchers") de John Ford: já o disse noutro lugar deste "Diário"--teria forçosamente de inclui-lo entre os dez melhores westerns alguma vez realizados e entre os vinte/vinte e cinco melhores filmes de sempre.


Entre os primeiros, incluo:


"Rio Bravo" de Hawks


"The Searchers" de Ford


"High Noon" de Fred Zinemann


"Shane" de George Stevens

"River Of No Return" de Preminger

"Night Passage" de James Neilsen
"Gunfight At The O.K. Corral" de Robert Aldrich


"They Came To Cordura" de Robert Rossen

"The Man From Laramie" de Anthony Mann

"Three-ten To Yuma" de Delmer Daves

...............................................................................

Destes meu favorito é definitivamente "Rio Bravo", de Hawks. É juntamente com "Playtime" e, muito especialmente, "Mon Oncle" de Tati um filme que revejo regularmente, sempre com renovado entusiasmo e um invariavelmente renascido fascínio.



Não tem, por exemplo, o devastador desencanto de "High Noon" ("contra" o qual terá, segundo a "lenda", de resto, sido feito); não tem a profunda seriedade, a densidade humana de "The Searchers" (poucos realizadores teriam, como Ford, sido capazes de tornar humana, logo desde o início do filme, a figura do misantropo e racista Ethan, contextualizando minuciosamente mas com uma subtileza e uma discrição absolutamente notáveis, a sua intolerância e convertendo mesmo o seu percurso desde o ódio à "redenção" final num problema com uma fortíssima dimensão universal susceptível de despertar a empatia de todos nós: o filme é uma descida aos infernos do ódio, poderosamente descrita e soberbamente compreendida, contada com uma contenção e um pathos a que muito poucos actores com excepção de Wayne seriam capazes de dar um rosto e um corpo tão solidamente definitivos); não tem isso mas tem, paradoxalmente... 'tudo': tem actores fabulosos (Dean Martin, por exemplo, é perfeito não sendo nunca 'académico' nem, de qualquer outro modo, tecnicamente 'exemplar': não precisando, diria eu, de saber ser nem uma nem outra dessas coisas...; Walter Brennan e Ward Bond são figuras absolutamente insuperáveis, nenhum deles tendo de lidar com "personae" dramáticas propriamente muito originais ou realmente excepcionais: o que cada um deles faz, à semelhança do que consegue o próprio Hawks genericamente com o filme, é conferir a cada uma dessas "personae" o estatuto paradigmático que as torna dificilmente repetíveis, com um mínimo de eficácia narrativa, a partir daí (1); Angie Dickinson é o complemento ideal do sólido, todo-poderoso ("high and mighty"...) , Wayne: nunca lograria, aliás, repetir a qualidade do seu desempenho no filme).

Deste fez Hawks um tour-de-force notável: um western 'de interiores' onde, todavia, a acção nunca cessa de realizar-se, numa fabulosa, contínua, 'festa dos sentidos' (muito mais do que reflexão ou mesmo da genuína inteligência: a única inteligência ali é exactamente essa dos sentidos, a que a própria acção, operando como algo magnético e até, por vezes, hipnótico, impõe e determina. Não é, todavia, apenas por esse facto que "Rio Bravo" é um tour-de-force genial.

Eu costumo dizer que, se se tivesse cumprido o que durante algum tempo foi uma espécie de sonho (muito remoto, de resto) meu de leccionar numa universidade, um dos filmes que eu escolheria para ilustrar a própria essência do uso das três unidades aristotélicas (algo, aliás, que, a mim, pessoalmente, durante muito tempo, sempre me acudia ao espírito, muito mais como uma bizarria e uma imposição, no fundo, limitadora e--possivelmente--gratuita do que propriamente como um elemento útil, uma ferramenta narrativa e composicional susceptível de permitir gerar obras de arte "vivas", como diria Régio), seria, sem dúvida, "Rio Bravo", de Hawks. Desse ponto de vista, o filme é, como digo, uma espécie de ... "objecto aristotélico" exemplar, algo que só um excepcional contador de histórias seria capaz de levar a cabo. O tour-de-force que refiro reside, precisamente, aí: no modo como Hawks (talvez) re/citando (e, ao mesmo tempo, "criticando" Zinnemann pela sua amarga reflexão alegórica sobre o maccarthyismo que é "High Noon") consegue, de passo, revivificar a "poética" aristotélica, transplantando-a com um bêbado regenerado, um velho aleijado, uma jogadora profissional e um xerife desengonçado, para o condado de Presidio, no "great state of Texas, U.S.A.")... Num certo sentido, "Rio Bravo" é (mau grado a importância e o significado do soberbo Cinema de Ford) o western.

É-o no estrito sentido em que tudo nele é claro, nítido e está perfeitamente definido em termos estéticos, éticos etc. Ou seja: também desse ponto de vista o filme configura algo de argumentativamente "aristotelizante", digamos assim. No preciso sentido em que, através da (cuidadíssima, de resto) arquetipicização das personagens e até das situações, habilmente enquadradas numa dinâmica pura de 'play' (de 'jogo' mas também de 'representação' e até de 'música', em mais de um sentido, de resto) propicia claramente uma catarse final onde está (volto a dizer: argumentativamente) muito do que Aristóteles preconizou para a tragédia e que os diversos paradigmas narracionais ulteriores sucessivamente foram, como se sabe, herdando, recompondo--e, por fim, de um modo ou de outro, incorporarando.

Pessoalmente, acho até que, num certo sentido, Hawks é ainda mais um homem de "rituais" do que Ford. Ford é (a meu ver pelo menos...) mais elaborado nas 'reciclagens', mais subtil, talvez mesmo mais... "artístico", mais europeu. É verdade que determinados rostos e determinadas "personae" a eles associados, no cinema de Ford (os de Wayne, de MacLaglen e de mais umas quantos actores chave da opus fordiana) transitam, com pequenos 'retoques' mais ou menos de circunstância, constantemente de filme para filme, tornando, como alguém também dizia, no documentário de Bogdanovitch, aconselhável ver "todo o Ford" para percebê-lo melhor e, sobretudo, para perceber melhor cada um dos filmes que dirigiu. Em Hawks, todavia, porque Hawks é muito mais directo; é, diria, (chamemos-lhe assim...) incomparavelmente mais... imediatamente vital, o contínuo "trânsito dos rituais" torna-se francamente mais reconhecível. O que fica perfeitamente claro, diria eu, a partir da análise, mesmo muito rápida e superficial, do que Hawks faz (para não referir muitos outros exemplos passíveis de serem citados para ilustrar esta... "tese") com a famosa sequência da Winchester atirada de Monty Clift para Wayne em "Red River" para a mesmíssima situação protagonizada por Ricky Nelson e o mesmíssimo Wayne em "Rio Bravo"; assim como, de resto, o que ele faz genericamente com este último filme e "Eldorado". Ou até o que fez com alguns momentos e personagens de "To Have And Have Not" de 1944 e os citados "Rio Bravo" e "Eldorado".

Eu atrever-me-ia mesmo a dizer que o grande mérito artístico e especificamente cinematográfico de Hawks consiste no modo, por vezes simplesmente genial, como recupera e eleva a um grau de depuração frequentemente arquetipal (senão mesmo genuinamente arquetípico) todo um motivário ou todo um temário específico disperso a que ele, no seu melhor (e "Rio Bravo" está seguramente aí situado, no melhor que Hawks alguma vez fez) logrou conferir expresão, de algum modo, definitiva. Tão definitiva que, retomada, mesmo pelo próprio Hawks (como sucedeu com o referido "Eldorado") é já completamente redundante e deixou, por isso, atingido anteriormente o referido estádio de... "insecto perfeito", pura e simplesmente de funcionar.

Duas palavras, porém, ainda, a "The Searchers": para além de quanto sobre ele já disse, é, também, curiosamente (e esse é um elemento que não pode, de todo, dissociar-se da qualidade caracteristicamente fordiana da obra) um dos filmes em que John Wayne nos aparece mais humano e, sobretudo, mais vulnerável.)


(1) Num documentário sobre Ford realizado por Peter Bogdanovitch alguém refere o modo como o cinema de Ford é um "cinema de rituais". O de Ford é-o seguramente mas não será menos o de Hawks que, aliás, se copia a si próprio "descaradamente", numa espécie de contínua reciclagem dos referidos "rituais", alguns deles estritamente pessoais, outro de um vastíssimo património cinematográfico e cultu(r)al comum a inúmeros "western makers".

"Um Grande Realizador E Um ENORME Actor"


Estive ontem a ver um documentário (razoável) de Peter Bogdanovitch sobre o grande John Ford.

Nele não se diz nada de propriamente muito original, funcionando, sobretudo, como um tributo inquestionavelmente comovido embora cinematograficamente muito limitado à memória do "homem que fazia westerns"--e que fez, de facto, alguns dos mais fabulosos e definitivos de que há memória.

Especialmente interessantes no documentário algumas passagens avulsas, designadamente uma em que, julgo que é Scorcese ou o próprio Bogdanovitch se refere a uma sequência de "The Searchers" (o filme de Ford, a meu ver) onde "entra" esse prodigioso intérprete dramático que foi Ward Bond.

Bond era um "supporting actor" absolutamente fabuloso. Dominava toda a paleta de moções e registos, do contido ao "explosivo" e aguentava sequências inteiras de filmes, levando-as literalmente... "às costas" até às estrelas às quais eram, então, "servidas de bandeja".

O seu truculento "reverendo", 'doublé' de capitão dos "Texas Rangers" em "The Searchers" é simplesmente genial.

A cena a que me refiro ocorre quase na abertura de "The Searchers" quando Bond/o reverendo-capitão, chega a casa da família que vai ser quase integralmente dizimada.

Ford (para quem o Cinema era sobretudo uma circunstância estrutural e estruturadamente dinâmica, sanguínea e seminal, embora sempre, de modo aparentemente paradoxal, drasticamente mantida sob o seu severíssimo controlo pessoal) encena a sequência dando aos actores liberdade para se moverem mais ou menos "livremente" no 'set' ("setting them off and then letting them do their thing according to the spirit of the script", por assim dizer).

A sequência abre de um modo (a meu ver) um tudo-nada "teatral" ("aquilo" é à partida um palco, cuja cortina acabou naquele instante de ser erguida) mas, de repente e em larguíssima medida por acção de um magistralmente 'vulcânico' e empolgante Bond no qual toda a cena fica, de resto, de imediato, "ancorada" ("around whom the whole sequence is instantly rooted and starts pivoting"), tudo "aquilo" começa a girar, a "sair" espontaneamente da "teatralicidade" original, e o Cinema começa logo ali a fazer-se, debaixo dos nossos olhos literalmente arrebatados e muito justamente maravilhados.

Bond é, ali, claramente o "agente no terreno" do próprio realizador.

Ele e Wayne, por exemplo (ou Victor MacLaglen ou esse outro "pequeno génio discreto" que foi o soberbo Hank Warden o "Mose" do filme, intérpretes que Ford levou naturalmente de filme para filme) são actores "fordianos" por excelência (como Bogart, por exemplo, era "naturalmente" "hustoniano" e também um pouco "hawksiano"...), funcionando no 'set' como extensões naturais da própria personalidade, da própria específica sensibilidade, da própria... "inteligência global da realidade" próprios do realizador.

Tudo "aquilo" se articula espontaneamente, tudo "aquilo" respira em uníssono, sem uma falha reconhecível, sem um erro.

Percebe-se distintamente ali por que (felicíssima!) razão, Ford "desconfiava" instintivamente dos escritores e os mantinha sob estrita vigilância, controlo e até, ao que parece, alguma reconhecível tirania(1): porque com o seu fabuloso instinto para a "composição" pictórica, para a plasticidade da relação com o écrã, e actores como Wayne, Warden, MacLaglen ou Bond, as palavras podem efectivamente tornar-se obstáculos à explosão seminal de todos esses 'soberbamente funcionais' egos cujo apelo vai claramente todo no sentido de se diluirem em última instância na própria acção convetendo-se naturalmente nela com um saber feito de intuição, é óbvio, mas, de igual modo, de um savoir faire onde a "ponte" entre a pura técnica e a Arte permanece sempre sabiamente meio oculta--mas (e aí residirá em grande parte o "segredo" do génio de Ford e do próprio Bond num plano obviamente distinto) nunca completamente... ´
Falando, agora, especificamente de Ford, resulta particularmente curioso (e intelectual e criticamente estimulante!) "comparar" um homem como Ford a outro, muito distante no espaço e na visão global quer do Cinema, quer da própria realidade--que este último mais do que reflectir, refracta) como o 'nosso' Oliveira: aproximando o Cinema que um e outro fazem, percebe-se melhor, imagino eu, a irredubilidade última ("ultimativa", "ultimate") que existe entre o Cinema ou entre uma... cinematicidade (teoricamente, ao menos) especificamente europeia (vou ser admitidamente primário no que vou dizer: essencialmente virada, em última análise, sempre para a reflexão e para a reintegração contínua dessa componente reflexional, de um modo ou de outro, no 'tecido' do próprio filme, sendo que ela é, muitas vezes, também, uma reflexão "em situação" sobre o próprio Cinema enquanto tal) e uma outra americana: norte-americana (sendo outra vez primário, eu diria que virada esta última para os aspectos in/essencialmente funcionaifeio vício da "categoriação" absoluta, dogmática, eu diria que existem, que estão objectivamente criadas cultu(r)almente, paradigmaticidades específicas (alimentadas por públicos igualmente distintas e possivelmente também eles específicos) que, todavia, a meu ver, em lugar de se oporem, como pretendem alguns, entre si, se completam e de algum modo tético se inter-explicitam e ajudam a inter-definir.


(1) Há uma "estória" que alguns contam sobre a relação de Ford com os "script-writers", designadamente com o escritor Nunnally Johnson.
Reconto de cor: após muito trabalho, Johnson terá conseguido fazer-se receber por Ford a fim de lhe ler algumas páginas de um "script" que lhe coubera redigir. Ford que estava, ao que parece num iate, recebeu-o, terá em seguida pegado no "script", ter-lhe-á dado uma vista breve de olhos, tendo-e depois negligentemente lançado pela escotilha para o mar, dizendo: "Pronto! Já li. Fico à espera que me traga as correcções."