sexta-feira, 8 de abril de 2011


Uma circunstância que, devo dizer, me interessa especialmente na Bíblia é o modo como ela evidencia a circunstância cosmovisional da péssima relação entre Cristianismo e realidade.

À maneira das formas de religiosidade que a antecederam, incluindo as mais primitivas, a Bíblia é, sobretudo, um tratado sobre como ignorar causal e organizadamente o real.

Não há no discurso bíblico uma teoria da realidade: há uma teoria [ou uma teorização para essa mesma realidade.

A questão da morte, por exemplo. É típico do modo de pensar do homem primitivo [que demonstravelmente o projecta nas representações religiosas que lhe são próprias] tentar intervir sobre o real, apoderando-se dele para negá-lo enquanto objecto, situado para além do desejo tornado, mais ou menos arbitrária e aleatoriamente um logos.

Quando vemos o modo como os egípcios, por exemplo, mas não só. "alimentavam" e "armavam" os seus mortos, percebemos como, para eles, a morte não existia, de facto.

Ora, o que, a meu ver, faz o cristianosmo é admitir implicitamente o mesma inexdistência da morte só que, mais uma vez, como sucedia relativamente ao motif do tabu, sofisticando e complexificando o à sua maneira o motif original.

A Bíblia dá-se, como disse, muito mal com a realidade.

Não nega já a morte daquelas formas cruaas de algumas religiosidades que a antecederam: continuando a dar de comer aos [não] mortos, por exemplo.

Recorre à ideia de milagre para fazê-lo.

Na verdade é um pensamento reconhecivelmente neurótico o que se plasma na miraculogia crística. É a tentativa de subverter, fazendo-o reverter, o curso natural da realidade, isto é recolocando a realidade, à revelia da dimensão tempo, no ponto exacto onde ocorreu uma "crise". Como as crianças que recorrem, muitas vezes, ao expediente do sonho para evitarem aceitar o que ass inquieta e/ou assusta, a Bíblia confere dinmensão cognicional e moral ao próprio delírio.


Como em certas formas tópicas de neurose, verifica-se um virar a cara ao objecto-realidade, e um refazê-lasimbólica ou simbologicamente a posteriori num código autónomo comandado pelo desejo, um código alienado do real, no exacto sentido em que deixa este objectualmente intocado, agindo segundo uma i/lógica caracteristicaamente mágica, sobre imagens suas.

O milagre, tal como o vejo, configura, em última mas real instâsncia, um sintoma da 'neurose organizada' que é o "Conhecimento" mágico-religioso.

Por todo o lado, como sucede no episódio de Marta e Maria achamos sinais desta aversão ao real, que irá fundamentar o dualismo maniqueizante corpo vs. alma que demonstravelmente marcará toda a "civilização moral" do Ocidente.

Na sessão da Casa Fernando Pesssoa, a propósito de Françoise Dolto, falou-se, de forma abundante, no cristianismo como integrador do Eu logo como "cura" em termos especificanmente psicanalíticos. Eu vejo-o muito mais como sintoma e como neurose geradora de sintomas que ele tente reconstituir e a esses sim, reintegrar num discurso que é acima de tudo, como digo, "neurose organizada". Claro que celebrando o triunfo da esperiritualidade o pensar crístico visa reintegrar ou "curar" fornecendo um sentido moral ao seu drama o Eu dividido entre pulsões e opções que o dilaceram. Mas essa suposta "cura" é sempre conseguida com o "empochement" o "pôr entre parênteses" de uma parte substantiva do real, no que ele tem de mais sensível, imediato, próximo e concreto. Na realidade o que se passa é que Deus criou um ser naturalmente inconciliável consigo próprio que está condenado a auto-mutilar-se para se tornar possível


É esta a leitura que faço de algum motivário crístico básico, depois plasmado numa teoria vastíssima de representações culturais laicas que copiam ponto por ponto o discurso e a cosmovisão crísticos. De facto neste, a morte não existe: é um mero argumento ou expediente imaterial, meramente teórico , de Deus, algo insubstantivo e insubstancial de que Deus se serve para testar a própria Criação. Como sucedeu com Cristo na cruz. Não conheço melhotr forma de evidenciar o contencioso entere pensar crístico e a realidade do que a ressurreição, ou seja, a negação total do tempo como lei do real e por conseguinte deste enquanto objecto com "leis" e um funcionamento próprios.

Quando Deus através de de Cristo cura os enfermos e ressuscita os mortos, desiobedece às leis naturais, descaulalizando todo oedifício funcional e funcionante do próprio real enquanto tal:é ainda uma vez, o tal pensar mágico-neurótico impondo o seu peso à realidade, alienando-a de si mesma ao transformar-se um símbolo e/ou ideia de si.

Hegel de em seguida Marx, debruçaram-se classicamente sobre este quadro dialectizante entre objecto e ideia sendo que, à sua maneira, Berkeley e os idealistas se deram conta também do conflito possível de ser gerado entre ambas.


Ilustração "Religion in a Rapidly Changing world/Body and soul", colagem sobre papel de Carlos António Machado Acabado]

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