Aqui estou eu em pleno périplo "gaudiano" diante de uma peça razoavelmente "descentral" do Mestre. "Descentral", digo eu, porque se situa fora da sua Catalunha natal onde estão as peças mais "canónicas", digamos assim.
E também porque não é exactamente uma dessas obras mais "canónicas".
Gaudì é, para mim (com um Horta, em muito menor escala, por exemplo) o Homem e o Artista que conseguiu dar expressão "dramática" e dialéctica perfeita, definitiva, a algo que era, sobretudo, uma actividade de puro ou impuro consumo burguês: a arquitectura "para ricos" do início do século passado.
A Arte Nova e a Art Deco são, com efeito, o mais perto que um merceeiro ou um tasqueiro analfabetos subitamente enriquecidos conseguem chegar da Arte e da Cultura Ocidentais.
Destas, formulam os "burgueses" em causa uma ideia confusíssima e caracteristicamente sincrética (ou "gestaltista", se quisermos "falar mais caro"...) onde convivem numa mesma peça (na qual inextricavelmente se confundem absolutamente "pêle-mêle": "c'est ça la règle du jeu"...) capiteis gregos jónicos e coríntios com outros bizantinos; gregas e abóbadas (ou cenários) de basílica turca ou búlgara; frontões barrocos e uma inspiração casuística e pontual de cabaret vienense.
Entre um número infindo de outras "coisas" do mesmo tipo.
Ora, o que Gaudì consegue nas suas melhores obras é levar o registo 'decadente' a uma inquietude e a um paroxismo onde o questionamento (involuntário?) do próprio modelo é já um motivo (angustiadamente) central (mas também empolgantemente descentrante e) essencial.
O fragmentário ou a fragmentalicidade estruturais (sugerindo a---auto?---laceração e a própria morte); a decoratividade sempre inquieta entre o (inconscientemente?) irónico e o tragicamente "festivo", induzindo o apocalipse de tudo aquilo que cultural e cultualmente lhe subjaz e a gerou; a integração do barroco como aspiração inconsciente à (lá está: auto!) imolação pelo fogo e antecipação subliminar do fim; tudo isso está no melhor Gaudì cuja opus essencial sugere irresistivelmente o sombrio fatalismo (ou suicidária fatalicidade) de um António Patrício, de um Álvaro do Carvalhal ou de um Manuel Laranjeira entre nós ao mesmo tempo que prenuncia criticamente a desintegração apoteótica do surrealismo de um Buñuel ou a louca surrealicidade da poética de um Éluard ou de um Breton; o delírio criacional de um Artaud mas também (e, num certo sentido, sobretudo) o suicídio orgásmico mais terreno de um Busby Berkeley de cujas torturadas plasticidades e triunfais explosões onanísticas e/ou sub-repticiamente homoreróticas a obra de Gaudì é uma sábia e inteligentíssima, deslumbrante, mensageira.
[Constato a posteriori que já tinha, noutro ponto deste "Diário" inserido esta fotografia e abordado este mesmo tema. Paciência! A fotografia é, no fundo, tão lisonjeira---como dizia o Fulano de noventa anos: "Ah! Quem me dera ter oitenta e cinco outra vez!..."---e traz-me tão boas recordações e o tema, por sua vez, tão inesgotável e fascinante que decidi não alterar coisa alguma no alinhamento e no próprio índice do presente "Diário".
Vai assim mesmo, pois, com imagem "a dobrar" e tudo...
Olhem: é "pr'á desgraça", pronto!...]
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