quarta-feira, 12 de março de 2008

E hoje joga o Benfica... (parte 1)


Começo pelo seguinte: por dedicar a "entrada" de hoje (esta, pelo menos: não sei ainda se, depois dela, haverá outras) a dois bons amigos que há muito fazem parte integrante (e inalienável!) da minha vida: o Sr. Irracionalismo e a Sra. D. Paixão...




São, com efeito, excelentes amigos e companheiros de vida com quem partilhei (e espero continuar a partilhar) alguns momentos de eleição ao longo destes sessenta e três ("going on sixty-four"...) anos que compõem aquela.




Nunca percebi muito bem aqueles 'intelectuais' bigodudos (ou barbudos---também os há...) mas invariavelmente circunspectos e "sérios" que acham que o primeiro dever das pessoas que já alguma vez na vida leram um livro é, imediatamente após tê-lo feito, proceder à pronta inscrição do aventureiro em causa no Clube dos Desprezadores Veementes ("Et Pour Cause!") do Futebol cujo presidente julgo que é, ainda hoje, o deputado do PSD (e "pessoa séria de carreira"), José Pacheco Pereira.




Ora, para sermos muito claros, devo dizer que eu não desprezo, de modo algum, o futebol e que o considero (a ele como ao hóquei, ao rugby---modalidade para a qual, não tenho, aliás, pessoalmente, a mínima pachorra sem, todavia, minimamente menosprezar!---ou ao voleibol) actividades, todas elas, perfeitamente compagináveis, como agora se diz, com a leitura de uma Duras ou de um Beckett ou a audição (para mim, extasiada!) de um Mozart ou de um Beethoven.




Iconoclasia e sacrilégio?




De modo algum! Aquilo que eu penso nesta matéria (e agora estou mesmo a falar a sério, ham?) é que é essencial que, na nossa vida (tanto na exterior como, sobretudo, na outra, na íntima, de onde deve, de forma natural, emergir a primeira) saibamos (com a... brechtiana reserva e o piscatoriano distanciamento que as circunstâncias impõem...) reservar um espaço (como é que havemos de chamar-lhe?) ritual ou intelectivamente cerimonial para a celebração organizada das nossas pulsões irracionais que as exigências estr(e)itas da socialidade estão (mais ou menos) naturalmente impedidas de absorver e, muito em particular, de integrar.




E creio mesmo que essa "ciência" que se ocupa com um mínimo de método e eficácia do isolamento e da "educada, contínua alimentação" (in vitro?) das ditas pulsões constitui uma vacina verdadeiramente inestimável contra um conjunto enorme de formas-e-formatos comummente conhecidos de selvajaria e barbárie.




O "desdobramento inteleccional" (ou a "disciplinada, lúcida esquizofrenia") que, para o efeito, preconizo (isto é, a escrupulosa organização de cada um destes dispositivos celebracionais avulos em "loucura teleguiada" sólida e consistente) é já por si um meio valiosíssimo de auto- e hetero-conhecimento e socialização. De identitarização e (no melhor sentido da palavra!) integração social.



Ora, o futebol permite-me "resolver" num código (que é também uma linguagem que posso, portanto, negociar e partilhar com os outros) "dissolvendo-as" idealmente por completo nele, todo um conjunto de "premências" e/ou tropismos puramente instintuais ("objectos bio-psíquicos" não-necessariamente socializadores que residuaram de modo inerte do Eu absoluto infantil original) mas que, exactamente ao converterem-se em língua, em idioma comum (o "código" de regras do futebol, no caso no nosso exemplo de hoje---e pelo e no próprio acto de de fazê-lo!) mudam tão sólida quanto educadamente "de estado" (e, insisto, se devidamente diluídos nos símbolos que compõem o código em causa) tornam-se factores ulteriores de socialização e integração não apenas do Eu no colectivo como, sobretudo, do Eu em si mesmo.



Eu não posso (estou pela ética da própria siocialidade no ponto exacto em que ela intercepta a deontologia profissional ou já se esqueceram de que eu sou professor?...) impedido de detestar este ou aquele aluno (que, porém, de facto, detesto!...) e de por exemplo, reprová-lo (eu ainda sou do tempo em que os alunos reprovavam e passavam...) para dar satiasfação àquela que (quer eu queira admiti-lo, quer não...) é a minha vontade efectiva, profunda e real.



Por muito que o irracional em mim o desejasse, não posso, obviamente!



Pois não!



Mas posso, primeiro, isolar e racionalizar (elaborar sobre ela e projectando-a, dissociada, de mim, submetê-la desejavelmente ao meu controlo intelectivo) essa dissociação potencialmente dilacerante entre os imperativos de ordem epistemológica e social que tenho de aceitar me sejam impostos de fora da lógica estrita das minhas "paixões" (se o aluno sabe, não tenho qualquer direito de reprová-lo: deixaria a um tempo de ser professor, justo e, no limite, pessoa civilizada e até minimamente inteligente se o fizesse!) e as minhas pulsões mais profundas e irracionais.



Proceder a essa distinção é, aliás, já por si, um passo importantíssimo no sentido do conhecimento (assim como dos princípios da educada socialização a que como indivíduo minimamente civilizado devo aspirar).






E posso, depois, sublimar a minha inevitável frustração potencialmente neurotogénica resultante desse como de outros incontáveis episódos de que é feita a nossa vida "social" em sentido lato em "jogo" e em linguagem---e "debitar" aquela representação puramente irracional de "justiça" que era reprovar o bom aluno que, porém, me é menos simpático numa outra "conta existencial" expressamente aberta para o efeito.





E é aí que entra o futebol.



FIM DA PRIMEIRA PARTE

Sem comentários: