quarta-feira, 12 de março de 2008

E hoje joga o Benfica (parte 2)


O futebol (ou outro desporto qualquer: eu gosto de futebol, neste espírito socializador e identitarizador que eu estou convicto que ele assumiu nas "public schools" inglesas e no modelo de educacionalidade aí veiculado); o futebol, dizia, permite-me, então, dispensar-me por inteiro de ter de explicar por que razão gosto do clube xis e porque oposta razão desejo a derrota do epsílon. Porque o futebol permite-me, de facto, desvincular o meu "gostar" e o meu "não gostar" da "opressão" de qualquer lógica ou razão fora da pura satisfação instintiva de gostar ou não.

Aquilo que me está vedado é (como dizer?) "dar erros de ortografia" ou "de sintaxe" no uso da linguagem para a qual escolhi "traduzir" aquelas tais pulsões irracionais---a saber, o código das leis do jogo.

Aquilo que eu não posso permitir-me é extravasar do (e violar, portanto, o!) código linguístico em causa, isto é, toda a minha hostilidade, todas as minhas pulsões negativas devem ser, tão literal quanto exaustivamente, vertidas para vitórias e derrotas desportivas.

Muita gente considera, por exemplo, que sendo nós, todavia... "desadeptos" do clube português xis "temos obrigação" de apoiá-lo sempre que joga com estrangeiras.

Ora, eu não penso assim: o futebol permite-me, por exemplo, (e aí é que reside o essencial do seu papel catártico e identitarizador!) não gostar desportiva ou não gostar competitivamente de modo mais ou menos absoluto do Futebol Clube do Porto.

Noutras condições, talvez eu devesse sentir-me obrigado (e sublinho: obrigado!) a apoiá-lo, mesmo contra vontade, contra as tais equipas estrangeiras.

O modo catártico como eu concebo o futebol, porém, dispensa-me do "dever patriótico" e, nesse sentido preciso, racional de fazê-lo e eu posso dar natural vazão à minha antipatia porque (e sempre que!) a expressei através da própria lógica estrita da competição e cuidando de seguir escrupulosamente as "leis" comummente construídas para veicular e transaccionar socialmente este tipo de estado de espírito ou de emocionalidade.

Pessoalmente, entendo que não se pode valorar demais esta saudável aptidão natural do universo lúdico, estritamente como tal, para a recomposição secundária mas reequilibradora da normalicidade afectiva e emocional específica do Eu cuja estrutura intrínseca está longe de ser, como se sabe, exclusivamente constituída pelo seu próprio conteúdo em racionalidade, digamos assim---ainda que as exigências estr(e)itas da socialidade me forcem continuamente a um investimento tão exaustivo quanto potencialmente violentador do meu próprio equilíbrio emocional e afectivo ou afeccional nestas.

A alternativa é o fascismo.

Isto é: quando eu começo a não dispor de (a não saber construir) áreas de projectividade e/ou educada, "ritual" esquizomorfia onde as minhas pulsões egóticas e especificamente ego-cêntricas possam resolver-se, de forma contínua, em paz consigo mesmas, digamos assim, é a própria realidade relacional e social que passa a receber "em cheio" todo o brutal impacto da minha irracionalidade em estado puro e "por tratar" ou "por processar".

A realidade não é a preto-e-branco mas o "jogo" (ou melhor: no jogo!) pode sê-lo e as minhas imagens e representações estáveis e identitárias dela tornar-se, por isso, não apenas socializáveis(o que já nem seria mau) como até (melhor ainda!) ulteriormente socializadoras.

E todos nos "entendemos" nas nossas discórdias e divergências.
E, depois, há a questão das "identidades"---pessoais ou individuais e colectivas. Eu gosto (sou do Benfica, ou melhor: eu assumo integralmente a minha "benfiquicidade"!) também porque a imagem que ele traz consigo da História e para a História é a do Clube do povo onde a "alma" se habitou a superar as contrariedades impostas pela própria carência e pela(s) necessidade(s).

Foi a questão do campo (que forçou à fusão do Sport Lisboa com o Clube de Benfica, cujos emblemas ilustram as duas partes desta "entrada" no presente "Diário"); foi o assalto/agressão dos ricos (do rival Sporting, o clube da aristocracia, fundado---literalmente---por um barão, o barão Holtreman Roquette); foi a depredação dos valores humanos (o "rapto de Artur José Pereira e, depois de Alberto Rio, o primeiro dos quais foi para o Soprting porque no Benfica não existia o luxo dos duches quentes...); foi o cavalheirismo de Cosme Damião (expulsando, por exemplo, o seu próprio jogador A.J. Pereira que foi indelicado num jogo na Galiza); foi o cavalheirismo de um Espírito Santo no famosísimo episódio com o grande Azevedo; foram as deficiências competitivas do velho Benfica de '40 contra os "Violinos" do Sporting; foram---eram---os modestíssimos sapateiros-de-vão-de-escada com os cromos do Rogério e do Corona ou do Vieirinha e do Sebastião colados na humilde madeira das improvisadas, esconsas oficinas; foram os sindicalistas e opositores ao regime fascista usando a bandeira do Benfica como sucedâneo autorizado de outra bandeira vermelha, estritamente proibida essa; foi, numa palavra, toda uma cultura de humildade e desprivilégio que se concretizou numa identidade institucional capaz de "escorrer" continuamente para quantos dela comungam e a partilham. Sendo "do" Benfica, eu sou também (e sublinho: também) muito claramente dos "humilhados-e-ofendidos" contra os outros; sendo "do" Benfica eu assumo integral ainda que, em larga medida simbolicamente, uma posição que é basicamente ética não deixando, no limite, de ser também e muito claramente política.

É verdade que eu não terei escolhido ser do Benfica---foi, sobretudo, como atrás disse, algo que aconteceu, que terá razões próprias para ter acontecido desse modo mas que eu nem me dou ao trabalho de tentar explicar.

Mas isso não significa menos que, sendo do Benfica, sou secundária ou intrínseca e necessária---conscientemente---tudo isso.


E VIVA, POIS, O BENFICA!

FIM DA SEGUNDA (E ÚLTIMA) PARTE

Sem comentários: