sexta-feira, 7 de março de 2008

Carpenter e os outros


Ontem, para mim, foi "dia semanal do pecado cultu(r)al", especificamente cinematográfico"...

Não sabem o que tal seja?

Eu explico...

Segundo alguns "especialistas" (melómanos, sobretudo) muitas pessoas, "intelectual" e, de uma forma genérica..."epistemologicamente respeitáveis" possuem, não-raro, vícios tão ocultos quanto inconfessáveis que, por razões óbvias, apenas podem satisfazer no mais absoluto segredo: são os amantes da «boa» Música que cedem ao prazer, canonicamente pecaminoso, de ouvir (e de gostar de ouvir) o Pavarotti cantar tarantelas; os leitores da «boa» Literatura que fazem outro tanto com os "whodunnits" de um Raymond Chandler, de um Horace McCoy ou de um Dashiell Hammett; os da «boa» Pintura que apreciam um H.R. Gigger (que, todavia, teve o atrevimento de conceber uns quantos mamarrachos para uma "coisa" excessivamente pop chamada "cinema") e por aí fora.

Eu, como dizia o outro, "é mais Hawks e Ford": o Howard e o John, respectivamente.

Já agora, confesso "tudo": e Anthony Mann (o de "Man From Laramie" e de "Bend Of The River".

E Delmer Daves (pois, esse, o de "3.10 To Yuma", um "irmão" menor e consideravelmente mais negro de "Rio Bravo" de Hawks.

Ah e Carpenter, John Carpenter.

Ontem, por acaso, foi dia de Carpenter.

Dele, estive a "banquetear-me cinematograficamente" com "Christine", a "estória" de um carro assassino.

Ou de um assassino que é carro.

Para muitos, estes filmes não passam de tolices sem nexo.

Ora, sucede que, na verdade, são, se vistos e equacionados correctamente muito mais do que isso.

A minha... "tese" nessa matéria é que toda a sociedade pensa---mesmo quando apenas a parte de cima ("if at all", é verdade!...) parece fazê-lo.

A parte "de baixo" quando pensa é com os "restos" ou os... "despojos" do pensar inadvertidamente deixados ao seu alcance pela parte "de cima".

Ou seja: a parte "de cima" tem Beckett, Adamov e/ou Kafka para pensar (se); a "de baixo" tem Carpenter, Frank Marshall e Tobe Hooper.

"Christine" é uma curiosíssima (e inteligentíssima!) "metáfora" da emergência na História das chamadas "contra/culturas" ou "transculturalidades" jovens.

Da "pós-modernidade pós-democrática", se assim quisermos dizer...

"Christine" é um discurso "aterrado(r)" sobre aquela "mudança de estado" (pós) cultural configurada pela deposição histórica das culturas onde ecoava e estava ainda expresso, onde estava ainda representado ou plasmado, o formato natural/original da Realidade e da História---um fenómeno a que chamei a substituição progressiva das "trickle-down societations" (ou societações vertic(i)ais tradicionais) pelas "shedding societations" (ou societações organicamente inorgânicas e/ou "horizontais" pós-tradicionais).

"Christine" é uma fábula sobre a destruição da relação natural da humanidade com o próprio real a partir da fetichização completamente alienada e (des) cultu(r)almente estupidificada com os objectos que caracteriza o pós-moderno das sociedades cujos meios, volto a dizer: naturais de relacionamento são com a realidade lhes foram roubados pela privatização económico-política do Conhecimento.

Desse ponto de vista, o filme "comple(men)ta" muito bem, a este nível fascinantemente quasi-série B, um "Halloween III" (do mesmo Carpenter) que era um filme notabilíssimo sobre a desintegração das sociedades ditas "ocidentais" ditas "democráticas" via televisão e via grandes empresas multinacionais ou não (como "Poltergeist" que era em parte sobre "isso" e sobre a culpa na sociedade norte-americana, algo de que já Henry James falava---e muito! E muito bem!---noutro "tom" em "The Europeans", por exemplo e a Beauvoir, noutro registo ainda, numa "coisa" caracteristicamente sábia e brilhante chamada "A América Dia a Dia") ou "Lobo/Wolf" de Mike Nichols, um fulano cinematograficamente não muito engraçado nem particularmente "luminoso" mas que aí teve o desarrincanço conceptual e narrativo de se sair com uma fábula "hobbesiana" realmente muito bem esgalhada sobre a "antropofagia laboral" no contexto de um certo tipo de vida e actividade económica.

Não posso, por tudo isto, aceitar que a uma (sub?) Arte que reflecte com esta lucidez e esta subtil, "apaixonada frieza" alguém possa ter a infinita insensibilidade de chamar uma "coisa" menor!


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