segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

"Cleópatra" de Joseph L. Mankiewicz [1963]


Muito mal apresentadinho, graçass a Zeus e como é de resto, habitual e típico da estação, apresentou a RTP Memória recentemente o "blockbuster" de Joseph L. Mankiewicz, "Cleópatra".

Trata-se de um filme que foi um colossal fracasso de bilheteuira e que, como muitos outros portugueses da minha geração, vi pela primeira vez, quando estreou entre nós, no falecido Monumental.

É também um dos mais 'odiados' filmes da História do cinema. Não será, excepto num sentido muito negativo, completamente oposto ao que pretendeu Walter Wanger, o produtor independente que colaborou na feitura da película [1], "a classic" ["a great motion picture to be seen not just onde year, but a classic to be seen by succeeding generations"] e "the greatest film ever". Não será [não é seguramente!] tão-pouco "Antony and Cleopatra" de Shakespeare ou "Caesar and Cleopatra "de Shaw mas julgo também, a avaliar pelo relato que Wanger dá da preparação para o filme que nunca pretendeu ser senão aquilo a que hoje chamaríamos talvez uma ópera pop essencialmente comercial baseada em topos culturalmente referenciais embora não necessariamente rigorosos em termos estritamente históricos.

O filme de Mankiewicz tem, com efeito, tudo pasra se tornar numa grande ópera popular com figuras e motivos que a tradição totrnou absolutamente referenciais e até emblemáticos e mesmo simbólicos, como convém a um libreto operático. Chamar-lhe "um dos piores filmes alguma vez realizados" representa, a meu ver, uma tremenda injustiça.

Sobretudo, tendo em conta que além do filme de Mankiewicz existe o "deslize" de Hawks que foi "Land of the Pharaos"e quase toda a pomposa filmografia "histórica" e bíblica" de Cecil B. de Mile, designadamente a famosíssima segunda versão d' "Os Dez Mandamentos", em meu entender, esse sim um dos cinematograficamente mais ignoráveis e até cinematograficamente mais desprezíveis filmes de sempre, uma "geringonça" narrativa sem personagens [bonecos de carne e osso substituem-nas com evidente vantagem para as audiências embasbacadas perante a habilidade dos truques, audiências essas que já conheciam aqueles ícones todos, de Moisés ao faraó, da Bíblia--facto que muito contribuiu em meu entender para o enorme sucesso pop do filme, em larga medida devido justamente a essa falsíssima impressão de inteligência que dá a banalidade engenhosamente disfarçada de obra de arte.

Em "Cleópatra" temos o shakespereano Richard Burton [segundo Wanger originalmente recusado com veemência pelos produtores] num papel que chegou a ser dado a Stephen Boyd, que ainda filmou algumas sequências com Peter Finch num 'César' que acabaria, ciomo se sabe, entregue a Rex Harrison, o sempre competente Rex Harrison [num papel onde Wanger "via" bem mais James Mason ou Laurence Olivier e os estúdios Cary Grant, Yul Brynner e Curt Jurgens] assim como alguns "secundários"de qualidade como o "hitchcockiano" Hume Cronyn.

Uma curiosidade histórica sem dúvida muito interessante é que o filme esteve para ser dirigido por Rouben Mamoulian e por Alfred Hitchcock, deixando nos muitos hitchcockianos pelo mundo fora, a dúvida de saber como seria a película dirigida pelo mestre de "Under Capricorn" ou "Jamaica Inn" , dois filmes "de época" realizados por Hitchcock.

Não é [longe disso!] o melhor filme alguma vez feito além de fazer pouca ou nenhuma justiça às mulheres, mau grado ser, como sublinhou sem adiantar qualquer outra necessária reflexão a apresentação do filme na RTP Memória, limitando-se a recordar que é uma mulher a fornecer o título e o eixo em torno do qual toda a história é suposto que gire. De facto, a ideia que o argumentista faz da Mulher é uma manifestamente negativa que está, porém, fortemente enraizada na rradição judaico-cristã: a da Mulher como referência e mesmo encarnação perversa do Mal da des-ordem, agindo na sombra onde tece as malhas de uma tragédia protagonizada pelos homens. É, um efeito, Lady Macbeth, de sucesso assegurado, astuciosamente assente numa Elisabeth Taylor que era à época o próprio rosto do escândalo [Wanger cita frequentemente a "epopeia" das exigências de Taylor em matéria de cabgeleireiro, o famoso Sidney Gilaroff que só a muito custo conseguiu vencer a resistência dos cabeleireiros britânicos onde o filme começou a ser filmado e figurar na ficha técnica da película].

Pouco antes casada com o recentemente desaparecido Eddie Fisher, o qual, como é sabido deixara a mulher Debbie Reynolds, amiga de Taylor, mas todo o oposto da imago pública "escandalosa" e fortemente erotizada desta última, para casar com a heroína de "A Place in the Sun" .

"Cleópatra" joga com os fantasmas cultu[r]ais sexuais de um público essencialmente puritano , puritanamente misógino e em geral, pouco dado a grandes reflexões em matéria histórica e/ou antropológica? Com certeza!

Um evidente oportunismo caracteriza, de facto, indiscutivelmente o ideário implícito da películas onde se vê mal Audrey Hepburn a fazer de Cleópatra, hipótese que, sempre segundo Wanger, chegou a pôr-se com elevado grau de probabilidade, ao lado das bem mais prováveis Joan Collins, Suzy Parker, ou até Gina Lollobrida [que havia feito "Solomon and Sheba" com Yul Brynner] e Sophia Loren.

Recuso-me, todavia, a incluir "Cleópatra" entre os não-sei-quantos piores, como já foi, aliás, abundantemente feito: é, com efeito, um filme "histórico" onde, ao contrário de tantos outros, o diálogo e a respectiva interpretação não constituem um mero ornamento ou excrescência.

É tão somente, diria eu, um filme para ser re/visto com espírito crítico e cautelas intelectuais e artísticas de todo o tipo, semelhantes às que levaram o próprio Laurence Oliviar, muito pretendido pelos produtores, em especial Spyros Skouras, a recusar misturar o seu nome ao filme.É preciso, porém, recordar que um escritor da estirpe de Lawrence Durrell não hesitou em aceitar colaborar no script.

Trata-se, em suma de um filme que se "deixa ver", desde que o abordemos, repito, como uma audiência mais culta abordaria uma ópera ou, em alternativa, de um ponto de vista muito mais antropológico do que propriamente cinematográfico--o que reforça, aliás, quero crer, o interesse em torno da ideia de saber como resultaria a pelíccula dirigida por um realizador da estirpe de Hitchcock.

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