No "Público" de 03.01.09 leio um texto de Vital Moreira sobre o cada vez mais inquietante "caso" Freeport.
Vem, claro, Vital Moreira a terreiro exigir a clarificação das suspeitas (ou não-suspeitas, tudo isto é cada vez mais brumoso e mais confuso...) que impendem sobre o primeiro-ministro de Portugal envolvendo o suposto recebimento por parte deste, enquanto ministro do Ambiente de um anterior governo, de um suborno de alguns milhões de euros, pagos (ou não...) pelo intermediário português de uma empresa estrangeira para "facilitar" a instalação do tal Freeport em Alcochete, em zona reservada.
Tudo isto com tios, sobrinhos e advogados conhecidos à mistura, como se sabe.
No seu artigo ("O caso Freeport como "questão de Estado"") começa Vital Moreira por incluir, com evidente veemência, uma crítica ao Presidente da República por, segundo ele, não ter aproveitado, alegando constituir tudo isto de uma "questão de Estado", o que o próprio Moreira define como "uma excelente ocasião, no seu discurso na sessão inaugural do ano judicial, de denunciar e censurar em geral a inaceitável demora das investigações penais (em prejuizo do bom nome dos suspeitos inocentes), a recorrente e impune violação do segredo de justiça (que vincula toda a gente) e a frequente instrumentalização de informações ou pseudo-informações não confirmadas, para fins de ataque político qualificado".
Ora, neste artigo de Vital Moreira há, em meu entender, diversas coisas curiosas.
Primeiro embora não propriamente (longe disso!) a mais importante, o supor Vital Moreira que nós, leitores, estamos interessados em saber aquilo que ele, Vital Moreira, faria (ou diz que faria) se fosse Presidente da República.
Porque é disso, na verdade, que, em última instância, estamos a falar.
Diz o articulista, com efeito, o seguinte:
"O actual P.R. foi discursar "não-sei-onde" e escolheu os temas tal-e-tal para incluir no seu discurso?"
Olhem, pois se fosse eu escolhia antes estes-e-estes!..."
Pronto: é um direito de Vital Moreira (como é o meu de optar por outros ainda, por exemplo aquele que o jornal converte em tema do editorial--ver Paulo Ferreira, "Há algum dinheiro. Mas está nos bolsos errados"--onde se fala das dívidas do Estado às empresas: porque não, com efeito?...)
É, repito, um direito de qualquer cidadão este, que pode, em última análise, ser visto como a curiosíssima mas, em caso algum, ilegítima (bem pelo contrário, aliás!) não sei se ingénua pretensão de... "ensinar o Padre-Nosso ao vigário".
No fundo, o exercício responsável da Cidadania é (também) isso: o estar atento aos "gestos" e aos "movimentos" (mesmo se só verbais...) do poder e ter opiniões precisas e responsáveis sobre cada um deles--ou sobre muitos deles, pelo menos.
Sobre aqueles que reputamos de mais relevantes, seguramente.
Para Moreira seriam aqueles temas que ele diz; para mim (a quem a opinião de Moreira, francamente o confesso, na realidade, não-aquece-nem-arrefece--embora me incomode sobremaneira o modo como a imagem do País, queiramo-lo ou não, finjamos ou não ignorá-lo, sai irremediavelmente "chamuscada" de todo este "imbroglio" que está subjacnte ao seu artigo) seriam seguramente esse outros ou também esse outro, tendo em vista a actual situação de crise económica e social generalizada.
É, insisto, também tudo isto, a Cidadania.
O que já se entende menos bem são, a meu ver, duas coisas:
Primeiro, a existência perfeitamente aceite, assumida mesmo, de um paradigma específico de intervenção política assente, em última (mas real) instância, num crucial (ou mesmo, "sans blague", vital) 'momento dinâmico' de todo o processo por ele determinado, precisamente naquilo que Vital Moreira vem agora censurar.
Ou seja, assente em larguíssima (e determinante!) medida, naquilo que todos os políticos censuram e verberam quando opera ao contrário do que são os seus interesses específicos mas também realmente circunstanciais (pessoais, partidários e por aí fora) mas que não hesitam em explorar até à exaustão, quando, ao invés, convém aos tais interesses, pessoais e/ou partidários.
A saber: o que o próprio Vital Moreira designa por "julgamento político-mediático".
Que é, com efeito, uma... "campanha eleitoral" senão a utilização (por vezes, obscenamente desonesta, aliás!) de um "julgamento" exactamente público (desoladoramente primário, não-raro!) que, pela sua falta de conteúdo e de substância técnica específica (em matéria política, económica, financeira, etc.) é feito todo ele (e, por isso, eu falei em obscenidade e poderia falar em desonestidade, pouca-vergonha, e por aí adiante...) com base na exploração muitas vezes primária, como digo, de emoções, de impressões sem o mínimo conteúdo, dos instintos mais rudimentares--da acefalia mais fácil e mais indecorosamente manipulável--das massas quando não da im/pura e simples superstição e do im/puro e simples preconceito?...
Aí, já poucos são em geral os que sentem o impulso (civicamente tão são quanto, afinal, sempre escandalosamente intermitente e in/essencialmente "funcional"!) de verberar os "julgamentos" do exactíssimo tipo daquele que passa, todavia, subitamente, a constituir «prática ignóbil» e «atentado político-mediático à integridade cívica» e por aí adiante, logo que se vira contra aqueles mesmíssimos agentes (chamemos-lhes, apesar de tudo, generosamente...) "políticos" que, ainda uns segundos antes, juravam a pés juntos confiar sem reservas no "sábio julgamento do povo" e a ele,em conformidade, entregavam (com todo o peso das respectivas máquinas de condicionamento e manipulação que são os grandes partidos) o futuro inteirinho dos seus próprios ricos futuros políticos...
Entendamo-nos: não falo de quebras de segredos de justiça e quejandos.
Esses são casos específicos de violação da lei que existe e constituem obviamente matéria penal.
Não se discute.
Não falo disso, sequer, portanto.
Falo sim, de um sistema político e simultaneamente, no caso, judicial que é (perdoe-se-me a expressão) "cúmplice activo da sua própria inépcia e da sua própria incompetência" para auto-regenerar-se, criando as condições objectivas necessárias para que esse tal "segredo" de "Justiça" deixe de poder ser alternadamente usado como arma de arremesso dos "interesses" partidários, como, aliás, não me resta a mais pequena dúvida de que, a cada passo (e, se calhar, concretamente neste) sucede.
Sucede, em qualquer caso, repito, não é segredo para ninguém, sempre que a cada um dos grandes partidos que monopolizam regularmente o poder entre nós "dá jeito" e convém...
"Casas Pias", "Camararates" e por aí adiante...
Embora quando, ao invés, in-convém não deixem nunca de vir a terreiro, quais virgens impolutas e histéricas, com tremeliques e tremeloques de toda a ordem, exigir indignadamente "justiça" e "respeito pela Verdade cívica e política"...
Ponto um.
Passemos ao ponto dois.
O ponto dois é este: o primeiro-ministro de um país europeu, dito "democrático" vê-se, em pleno século XXI, subitamente envolvido numa escandaleira imensa envolvendo alegadas "bribes", "serious fraud" e "corruption".
Foi o homem "subornado"?
Praticou alguma dessas "serious frauds"?
Deixou-se, numa palavra, "corromper"?
Deixou-se, numa palavra, "corromper"?
Não sabemos.
Como defensores dos princípios básicos do Estado de direito acreditamos em tese que não--até que algo venha a provar-se em contrário, como é, aliás, estrita mas não estreitamente, exigido pela letra e pelo espírito da lei.
O que acontece é que este primeiro-ministro faz parte de um governo dito representativo que é supostamente vítima de uma "campanha negra" (bela e, sobretudo, eufónica e eficaz expressão, sem dúvida!...) que, ao contrário, aliás, do que parecem sugerir as defesas que dele fazem os advogados da "cabala local" chegou já ao exterior, à Justiça inglesa, tendo deixado, pois, já há muito, claramente, de constituir mera "trica" local e, por conseguinte, localizada ou localizável.
Ora, o primeiro-ministro de um país democrático responde obviamente perante quem o elegeu--no sentido de responde perante toda a sociedade que, votando ou não nele e no partido "dele", fez com que fosse eleito e que ele deve por definição, nos múltiplos sentidos da palavra, representar.
Tem responsabilidades políticas, internas e externas, tanto quanto jurídicas e especificamente judiciais.
Não pode eximir-se a elas nuns casos e, pelo contrário, reivindicá-las expressamente noutros.
Claro que as pessoas discutem!
Devem discutir!
É delas; é do País; é da sua imagem pública nacional e internacional; é da dignidade da própria Democracia que todos dizem respeitar e defender; é de responsabilidade cívica e política que se trata, meu Deus!
Os jornais mentem, caluniam, difamam?
Processem-se!
A Justiça é lenta?
Pois é! Mas não é lenta só quando o primeiro-ministro é, justa ou injustamente, suspeitado: é lenta sempre e para todos (para todos, mais até, por óbvias razões, do que para o primeiro-ministro mas enfim...) e se há quem possa (e deva!) fazer algo para que tal não aconteça é precisamente o primeiro-ministro e o governo que ele encabeça.
Mais: a competência e o merecimento democrático de ambos mede-se também, de forma determinante, por aí, pelo modo como um e outro sabem ou não ajudar a regenerar as instituições de cujo deficiente funcionamento não podem, em caso algum, de forma levianamente passiva, vir a público lamuriar-se (o primeiro-ministro ou alguém por ele) apenas e só quando (e porque!) dá jeito...
Vital Moreira é livre de acreditar que o primeiro-ministro está inocente do que o acusam.
É tão livre de acrdeditar nisso quanto outros o são de crer precisamente no contrário disso.
Tem--terá--os mesmos exactos fundamentos que outros têm para crer no tal contrário: se o segredo de justiça não foi, noutros pontos, violado, nem uma nem outra partes têm fundamento algum.
Não sabem.
Não viram.
Não podem em consciência jurar.
Agora, seguramente curioso é o modo como Vital Moreira encerra ou coroa a argumentação do seu texto.
Está ele preocupado com a tal imagem interna e externa do País?
Estará mas não diz.
Está ele, acima de tudo preocupado, com a hipótese de o "fumo" ter, afinal, com tanto tio e tanto sobrinho metido no caso, o mínimo "fogo" e envolver a credibilidade da própria República, de tal modo que já chegou de um modo ou de outro, como disse e é sabido, à polícia de um país estrangeiro?
Estará mas não diz até porque é evidente que já formulou o seu próprio julgamento sobre o (não?) caso.
Significativo é, todavia, permito-me eu afirmar, o modo como ele sustenta a sua indignação: com o que entende ser (e ele lá terá as suas razões para entender isso mas enfim...) a tal "gigantesca instrumentalização de uma investigação penal" que, aliás, "inconclusa e reservada" embora, como ele diz, não nega nem desmente, de que fala a dado outro passo do seu artigo.
Diz Moreira textualmente: "Sendo óbvio que o enlameamento (sic) de Sócrates e a difusão da suspeição política sobre ele poderá (sic) acarretar consideráveis perdas eleitorais ao PS [sublinhado meu]--sendo esse obviamente o objectivo deliberado dos que desencadeiam e alimentam esta operação [pergunta minha: E isto? Não é isto com todas as letras uma suspeição, um "enlameamento" e "julgamento" sobre a idoneidade específica da imprensa de um país dito democrático no contexto do qual o papel independente dessa mesma imprensa se revela factor essencial?...]
Mas Moreira não fica por aqui.
Para quem ainda alimentasse dúvidas sobre o tipo de preocupação de que está, em última instância, possuído, continua dizendo que [o que há de perverso nesta "operação" será que] "é por demais evidente que o resultado das eleições pode vir a ser decisivamente influenciado por ela" [sublinhado meu].
E aqui fica, num ápice, claro o modo como, no fundo, o "sistema" se reflecte, afinal, a si mesmo, se pensa a si mesmo e se vê a si mesmo: como uma gigantesca máquina de poder à qual, em última instância, apenas o poder e os modos de obtê-lo e de disputá-lo efectivamente mobilizam e importam.
Os quatro derradeiros (e, de resto, bem "maciços"!) parágrafos do artigo de Moreira são sobre possíveis danos eleitorais para o partido que hoje obviamente apoia e cuja permanência no poder não hesita, não menos obviamente, em advogar sempre que pode, como é fácil constatrar por quantos têm o costume de ler o jornal onde habitualmente escreve.
Não é isso que me incomoda--ou sequer que me interessa: o partido em que Moreira vota, as fidelidades que entende nutrir e publicamente ou não evidenciar.
Isso é lá com ele e que, como diz "o outro", lhe faça muito bom proveito.
Respeito as dele (i.e. respeito em abstracto democraticamente o direito democrático a tê-las ele e a defendê-las ele sempre que as considerar postas em causa e/ou atacadas) tanto quanto respeito, como princípio democrático básico, as minhas próprias e tanto quanto exijo que meus concidadãos em geral mas respeitem.
Não são, repito, as opções políticas e especificamente partidárias de Moreira (ou de outro qualquer, já agora) o que me interessa, pois.
Interessa-me, sim, muito para além de Moreira, de Sócrates ou de outro qualquer, como digo, o modo como o poder se acha hoje-por-hoje, concretamente (des) estruturado em Portugal; o modo como--os mecanismos por intermédio dos quais--o poder se institucionaliza e se perpetua mas, sobretudo, o modo como ele escassas décadas depois de Abril, se converteu já, objectiva e não-democraticamente no único real objectivo e conteúdo de si próprio.
É, penso eu convictamente, com todo o respeito mas também com a maior e a mais séria das preocupações cívicas e políticas, disso que "fala" abundante, eloquentemente, no fundo, o artigo do "Público".
E o mal é exactamente esse.
[Imagem extraída com vénia de puroveneno.blogs.sapo.com]
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