segunda-feira, 9 de novembro de 2009

"Educação e «educatividade»----algumas notas e reflexões pessoais" [Ainda não completamente redigido]


Desde que Henrique Medina Carreira, antigo ministro das finanças de um governo Soares, se referiu ao pessoal político dos dois maiores partidos políticos do espectro partidário nacional, com a drástica fórmula que dizia: "essa gente é um nojo" ["Essa gente??!! Mas essa gente é um nohjo!!] que se me tornou, confesso, especialmente difícil (por muito "simpático" e generoso que, para com a maioria dos políticos nacionais, pretendesse ser...) encontrar modo mais eloquente, ainda que indiscutivelmente brutal, de qualificá-los.

Devo esclarecer que coincido com o impiedoso "crítico" dos políticos do "establishment" partidário nacional, desde logo, na [evidente!] indignação e ["sonoríssima!] revolta relativamente ao modo como, de facto, aqueles que parecem ter "tomado de concessão" esse mesmo espectro---"pê-ésses" e "pê-pê-dês"---vêm, há muito, contribuindo, por inércia e pura inépcia, para, leviana e irresponsavelmente, bloquear sine die qualquer hipótese, mesmo remota, de modernização estrutural do País, trocando teimosamente as tarefas necessárias à realização desse desiderato nacional (que, se calhar, é até, cada vez mais, civilizacional) por todo um acervo ou parafernália de... "causas" onde o urgente debate colectivo sobre o que para muitos é já a questão essencial da viabilidade futura do País continua obstinadamente a naufragar.

Um dos iens básicos a considerar incontornavelmente naquele debate [que, repito, para "esta gente" parece representar um mero fait-divers por oposição a questões, essas sim, para "esta gente" questões-chave como a da co-avaliação dos professores pelos chamados 'encarregados de educação' [!!]] e/ou outras que, pura e simplesmente o não são como a das uniões ditas "de facto" e a que envolve o "casamento dos homossexuais" que são, afinal, na realidade, nestes dois últimos casos, coisas tão evidentes que nem deveriam ser objecto de "debate"]; um dos itens básicopas da verdadeuira discussão, dizia, prende-se com a questão ou questões da Educação e da educatividade, em Portugal, hoje.

Questão consistente [e persistentemente!] mistificada por gente que, se não é, como afirma Carreira, o tal "nojo" é seguramente de uma incompetência e falta de visão histórica e [não me canso de dizer] civilizacional que arrepia [Maria de Lurdes Rodrigues ou Maria do Carmo Seabra, as duas últimas ministras da educação, por exemplo e para não irmos mais longe, foram verdadeiros "aleijões técnicos e políticos que ilustram, afinal, na sua trágica perfeição a asserção de Carreira...]; questão persistentemente mistificada, dizia, ela é-o precisdamente na medida em que parte invariavelmente da des-consideração e des-peercepção da verdade básica de que todo e qualquer modelo ou paradigma de educatividade parte de uma situação de objectiva e dialéctica des-iogualdade configurável numa fórmula:

1. a 'educação', qualquer variante da relação educacional básica e nuclear genuína, existe porque um ou uns sabe[m] aquilo que outros não sabem.

2. a 'educação' [repito: qualquer variante do modelo educacionalbásico e genuíno] existe para que essa desigualicidade tética venha a ser anulada a prazo constituindo essa "anulação" ou "superação dialéctica" o objectivo mesmo da prática educacional e/ou educativa.

É versdade que um certo modelo de apropriação civilizacional e política do conhecimento tornou moderna e pós-modernamente "problemática" a relação objectiva da 'educação' e da respectiva utilidade técnica e social, por um lado e da 'educação' e, de um modo mais amplo e abstracto, dos paradigmas de apropriação e transformação crítica do real, por outro.

É verdade, dito de outro modo, que quando parte da sociedade tende a tornmar-se, como hoje acontece nas sociedades ditas "de capitalismo pós-industrial" excrescencial e redundante, próprias educação, tal como a concebíamos [se é preciso fixar uma data de referência] desde a Revolução Francesa se tornou, com ela, ela mesma potencial (ou mesmo realmente!) excedentária.

Ainda assim não há como "dar a volta" a isto: só há 'educação', repito, quando e, sobretudo, porque há uma reconhecível desigualdade inicial entre os indivíduos; só se justifica que a haja quando e porque as comunidades humanas [e até, num certo sentido, animais, em geral] estabelecem como objectivo, de um modo ou de outro, básico de intervenção na História e/ou na realidade que deixe de as haver. O fundamento epistemológico essencial da "autoridade" vem daí: da capacidade ou aptidão circunstancial que alguns têm de mediar e implementar o processo de nivelamento estrutural que tem a 'educação' no seu vértice, digamos assim.

A "autoridade" nos modelos de 'educatividade orgânica' chamemos-lhes "tradicionais" [os que, de um modo ou de outro, sairam das teorizações dos filósofos revolucionários franceses] não se dissocia dessa capacidade e/ou dessa aptidão.

Representa uma componente instrumental, primeiro e simbológica, em seguida, do próprio processo e, por isso, é dele epistemologicamente indissociável.

Quando as tarefas de 'educar' passaram dos anciãos para a "Escola" a autoridade, a efectiva e objectual como a simbológica passaram com ela.

E é só quando a "Educação" se torna, primeiro, potencial, em seguida, realmente inorgânica relativamente à própria sociedade que a "autoridade" se torna "problema" ou ou "questão" [problema em si ou questão em si] e pode começar a ser consistentemente concebida fora da utilidade ou 'utilicidade' que a fundamentava e tornava orgânica com a Educação.

O que eu quero dizer como conclusão é, pois, numa palavra, o seguinte: apenas quando/se [1] reencontrarmos como civilização para a Educação uma [nova?] utilidade social e quando [2] o Conhecimento deixar de ser uma propriedade privada estr(e)itamente integrada no [anexada ou mesmo indexada ao] processo de gerar contínua e ulteriormente capital, poderemos ter esperança de veer consistemente resolvida a "questão" da "autoridade" nas [e das] escolas e poderá ser reposta [resgatada] o esquema básico da educatividade: aquele que passa, como disse, nuclear ou verticialmente por uma relação contínua e estrutural/estruturantemente dialéctica da des-igualdade básica entre os indivíduos de uma mesma comunidade e um projecto de igualicidade organizada em que a técnica ou o Técnico mandam fazer e a Política ou o Político operativizam e operacionalizam.


[Imagem extraída com a devida vénia de tevescopio.blogger.com.br]

domingo, 8 de novembro de 2009

"Abu-Ghraib Is A Place On Earth" [Colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado]


Saramago e o impacto da tradição judaico-cristã [esboceto]


A publicação da mais recente obra de Saramago, "Caim", abre-me uma espécie de porta para algumas reflexões pessoais de ordem não necessariamente literária [de facto, de ordem francamente meta-literária!] que, na obra, porém, de um modo ou de outro, se originam---e, se outro mérito ela e o seu Autor não tivessem, esse---o de [re] suscitar o diálogo em torno de um acervo básico de referências e motivos de ordem cultu(r)al comum, num certo sentido preciso, todos eles "fundadores" em termos da nossa identidade civilizacional colectiva; se outro mérito Saramago e o seu recentíssimo "Caim", dizia, não tivessem, esse tê-lo-iam, pois, seguramente.

Somos, de facto [falo, sobretudo, da Europa, da Europa-sem-aspas, da Europa como realidade cultu(r)al secular que cada um de nós, mesmo quando do facto, não parece dar-se conta, "é"]; somos, pois, dizia, queiramo-lo ou não, um universo (como dizer?) 'genericamente cultu(r)al' que se formou, em larga medida, a partir de uma certa visão judaico-cristã muito particular do mundo e da realidade em geral.

Que dela se formou em inúmeros casos, por aceitação implícita [e não menos implícitas assimilação e integração de todo um conjunto de modos de ver e re/organizar significadamente os dados do real que ela trouxe para a História] mas, de igual modo [e, num certo sentido, até, sobretudo] por (como dizer?) reacção ou 'resposta dialéctica' a esses mesmos modos siginificados de, se assim me posso exprimir, "organizar intelectiva ou inteleccionalmente" o real.



O aspecto que vou aqui focar é um exemplo das primeira daquelas situações: um "caso" do que poderíamos com propriedade designar por "contaminação cosmovisional" por osmose que, do universo concepcional daquela tradição "emigrou" para um certo paradigma de percepcionalidade comum das dados da realidade (que, não-raro, atingiu mesmo o domínio aparentemente insuspeito do pensamento científico).

Refiro-me à ideia de que a realidade possui um horizonte significado para o qual, de um modo ou outro, tende---sucedendo que, por decorrência natural, o papel da acção humana na História, se reduz de algum nmodo consideravelmente, precisamente porque o "destino da realidade" é algo que está, volto a dizer: de um modo ou de outro, prévia (imanentemente?) inscrito nesta não dependendo, em última mas também verdadeira análise da vontade dos indivíduos que ele exista ou não.

Dizia, atrás, que este modo específico de (não) ver e (não) perceber a verdadeira natureza ou essência do real (isto é de ser, de algum modo, difícil vê-lo, mesmo às ciências ou a algumas delas, de forma objectiva e "fenomenológica" ou "fenoménica" como desprovido de um sentido inerente e imanente que tenha de ser, não construído mas achado) condicionou as próprias ciências---ou, como também precisei: certas de entre elas, designadamente alguma "Ecologia".

Existe, com egfeito, um certo "olhar ecológico" muito primário e simplista que tende a ver a realidade ambiental como algo que pode ser (e que deve ser!) (re!) encontrado, precisamente por se tratar de algo (uma espécie de "âge d'or" ou "paraíso perdido) que teria possuido existência efectiva "noutros tempos" (num... mítico "indo-europeu da ambientalidade") entretanto, como disse, "perdido" por acção do perverso "progresso", sobretudo, técnico e tecnológico.

É, ainda e sempre, aquela ideia muito... platónica ou neo-platónica---plotinniana---que supõe o real plasmado (desmodelado, disfuncionado) a partir de arquétipos onde [como no simile adâmico] residiria e perfeição, sendo que o papel do homem na História consiste muito mais em reencontrar-se com esse suposto passado ideal de onde a Humanidade alegadamente se auto-expulsou do que construir a partor da experiência e da observação cuidada e despreconceituosa do real um futuro sólido baseado na percepção rigorosa das "leis" que regem real e especificamente este último.

De facto, um pensar verdadeira e, sobretudo, credível e fundamentadamente ecológico é (não é difícil aos que querem pensar, em termos de credibilidade cosmovisional, "lealmente" a realidade percebê-lo hoje) o que começa---e que começa como pressuposto epistemológico e metodológico nuclear---por se afastar determinadamente de um paradigma menos fonemonénico e "existencialista" do que disfuncional e disfuncionadamente "essencialista" (claramente de inspiração judaico-cristã) de "olhar significado" sobre a realidade onde a ideia do tal 'horizonte significado' para ela constitui uma componente implícita e, de um modo ou de outro, incontornável---condicional, mesmo.



Lendo, quase por acidente, ainda não há muito o "Monde" [de 12 de Setembro de 2009] deparei com um artigo ["Mercure: le Pérou souillé depuis 3.400 ans"] da autoria de Hervé Morin onde se revelava [com evidente ceerteza para desespero dos "horizontalistas" e "essencialistas" da Ecologia] que, por exemplo, muito antes, como se constata, da chamada "idade industrial" [Morin usa, aliás, expressamente o termo] os Andes já se encontravam substantivamente contaminados por doses consideráveis de mercúrio, um dos mais activos poluentes ambientais que se conhecem, utilizado para a fabricação de um pigmento, muito apreciado ["de choix" diz o jornal] pelas culturas pré-colombianas.

E recorda o autor como, o "processo de amálgama da prata e do ouro" descoberto em 1554 e que, escreve Morin fez precisamente do mercúrio "o motor da riqueza dos conquistadores---e" [acrescenta ela] "a desgraça dos povos indígenas".

Primeiro caso, há 3.500 anos; segundo há cinco séculos, em pleno século XVI---muito antes da "idade industrial", pois, como lembra Morin.

Mais: nessa mesma página da secção de "Ciência" do "Monde", um outro articulista, Stéphane Foucart regista o "caso" da região francesa do vale do Seille [Moselle] onde um "estudo de saúde pública" levado a cabo por "um certo doutor Ancelon" em meados do século XIX revela que os habitantes da região ocupados nas actividades de extração de sal, eles próprios "há mais de três mil anos" [sublinhado meu] tinham em média uma esperança de vida de dez anos menos do que os restantes franceses do tempo.

Durante longos anos [admissivelmente, desde o neolítico] actividade estritamente artesanal, a extracção de sal conduziu os habitantes do vale a situações de [falta consistente, sistémica de] saúde catracterizadas pela ocorrência frequente de casos de gota e de patologias causadas por disfunção crónica da tiróide.

Mais grave ainda: como o artesanato em causa passava pelo processo primário de extrair o sal dos poços e de aquecê-lo em grandes reservatórios de barro, a breve trecho originou-se na região um cada vez mais gravoso fenómeno de desflorestação massiva que, diz o autor, viria a ter sérias consequências---um gravíssimo impacto---ambiental acarretando dificilmente reversíveis fenómenos de erosão por todo o vale assim como, como se já não bastasse ["par dessus le marché"] um colossal depósito de fragmentos de barro de cerca de... quatro [!] milhões de metros cúbicos de matéria argilosa inerte!

"Ou seja", precisa o articulista, "mais de uma vez e meia a pirâmide de Quéops", no Egipto!"

E conclui: "Atafulhado de detritos e desgastado pela erosão, o vale foi-se, popuco a pouco, aplanando e assoreando.

Graças aos cortes estratigráficos, sabemos hoje que o Seille corria na idade do bronze oito metros abaixo do curso actual. As suas águas, límpidas, corriam num leito de areia e gravilha; desde a Alta Idade Média [não... Mídia, Média!] que o rio foi gradualmente estagnando e o vale cada vez mais tensdo de vale apenas o nome".

Ou seja, sintetizando o meu ponto de vista: a saúde [ou, no mínimo, a sanidade---que, é preciso dizer, não é exactamente a mesma coisa] ambiental não é, nem algo que tenha mais ou menos imanentemente existido num passado de ouro [com---cá voltam, então, Saramago e a questão pelo seu mais recente livro reintroduzida envolvendo o impacto a vários níveis, neste caso, mais ou menos 'invisível', da tradição judaico-cristã nos nossos modos tópicos cultu(r)ais de aperceber e representar a realidade---com "Abel" expulsando triunfal/finalmente "Caim" do conjunto de determinantes activas da realidade] nem, por outro lado, alguma coisa que se possa, a-histórica e a-cientificamente conceber fora do quadro de rigorosa experimentalidade e objectiva responsabilidade os resultados de cuja acção são sempre puras "invenções" em lugar das "descobertas" e, pior aindas, das re-descobertas que hoje muitos imaginam constituirem a essência ou "alma epistemológica e metodológica" mesmas da Ecologia.

Com a carga de responsabilidade pessoal que é, por definição ética e metodológica---civilizacional---inerente a qualquer uso verdadeiramente pioneiro e realmente original da realidade.

[Imagem aludindo à chamada "pegada ecológica" humana extraída com a devida vénia de designeoambiente.com]

sábado, 7 de novembro de 2009

"«O» Beckett perfeito"


Estou demasiado cansado para escrever o que quer que seja minimamente original---ou sequer para concluir as diversas 'entradas' que ficaram ultimamente por concluir: traduzi (abominável vocábulo, perturbador conceito...) Beckett, toda a tarde.

Chega para deixar qualquer um "interiormente derreado", literalmente vazio.

Deslumbrado mas vazio.

Limito-me, por isso (exausto exorcismo!) a deixar aqui (ainda!) um novo "sinal" becketiano---desta vez, dessa coisa imensa e definitiva---final, terminal!---que se chamou "Nacht und Träume", o Beckett definitivo, "the ultimate Beckett", um Beckett que se prepara serenamente para a Morte e que já abandonou, por completo, o manto inútil de palavras com que sempre (e de forma quase sempre genial e genialmente inquietante!) se desencontrou da Vida e de uma espécie de Sentido último das coisas que a sua escrita sempre determinadamente lhes vedou...

O Beckett sem palavras ou "para além das palavras"---"jenseits der Wörter", como diria Nietzsche: o Beckett definitivo e perfeito, pois, aquele para onde converge, desde o início, todo o seu prodigioso e único 'esforço textual'...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"Outra Vez Traduzindo Beckett... no dia seguinte a ter morrido Lévy-Strauss"

Para me conservar dentro de um espírito adequadamente beckettiano [mal digerida ainda a amarga notícia do passamento do autor de "Tristes Trópicos", Claude Lévy-Strauss] enquanto verto para português um dos textos de Beckett ainda inéditos no nosso [solidíssimo, resistente e teimosamente imperfeito idioma] ofereço-me aqui a mim mesmo uma impressiva imagem do seu enigmático, inquietante e tricéfalo "Spiel/Play/Comédie", uma imagem que é também, num certo sentido simbólico [ou inquietantemente metafórico] a representação cristalizada da própria Morte---de que me permito socorrer-me para evocar, com o coração pesado como poucas vezes antes, não apenas o génio de ambos como, desde logo, a mais recente traição feita à Cultura Universal com a morte física do segundo...

terça-feira, 3 de novembro de 2009

"«To A God Unknown», colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado"


Termino o dia-e (passado entre este bom e cúmplice "Quisto" e, de novo, a tradução de um Beckett sempre fascinante) com um apelo vibrante e sentido à paz.

"«Hon Dansade En Sommar», colagem de Carlos Machado Acabado re/dedicada a Olga Roriz e ao seu novo espectáculo «Nortada»"


"Olga Roriz e Pina Bausch-I"


...a Arte autêntica, genuína, é quando, depois dela, a realidade se torna, na sua forma comum, não apenas completamente inútil como, sobretudo, para todos os efeitos, praticamente inabitável...

"Olga Roriz e Pina Bausch-II"


De cima para baixo: cena de "Paraíso" de Olga Roriz e cena de "Eurídice" de Pina Bausch: "a study on dissolution" ou "Do movimento como projecto de metafísica visual e/ou experiência ontológica total"---o ponto de vista do espectador.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

"Dois bailados em potência [entrada dedicada a Olga Roriz e a Robert Helpmann]"

Olga Roriz

A minha [ainda muito "experimental", muito provavelmente não-definitiva e já aqui, pelo menos, uma vez citada] recente adesão ao "Facebook", permitiu-me o privilégio de uma breve troca de impressões com uma das pessoas que mais admiro, neste nosso estranho e contraditório, quase invariavelmente decepcionante, Portugal de hoje: a bailarina e coreógrafa, Olga Roriz cujo recentíssimo "Nortada" estreou há pouco, no "Camões".

A oportunidade rara de comunicar directamente com a coreógrafa de "Pedro e Inês" trouxe-me à memória uma ideia antiga---infelizmente irrealizável porque não sou, eu próprio, nem coreógrafo nem sequer músico ou libretista---que é a de transformar em bailados (à semelhança do que Robert Halpern fez com o "Hamlet" de Shakespeare, por exemplo) dois textos (num caso, como veremos, um fragmento) que particularmente admiro: o conto "O Amigo da Morte" de Pedro António Alarcón (uma espécie de eco espanhol de Álvaro do Carvalhal ou de Gérard de Nerval ...); um texto romântico extremamente perturbador, excessivo e poderosamente visual que (com esses e outros excelentes motivos, aliás) interessou especificamente o grande Borges (que o incluiu entre as escolhas para a sua "Biblioteca de Babel", reeditada entre nós pela Editorial "Presença") e a "sequência" do 'sonho' de Brás Cubas, da obra de Machado de Assis.

O conto de Alarcón é, como disse, uma espécie de "irmão peninsular" de Álvaro de Carvaljal e narra, como o próprio título indica, a saga de Gil Gil, um sapateiro filho natural de um conde que, caído em desgraça por razões que não valerá a pena aqui detalhar, é visitado pelas Morte com quem mantém um insólito "romance" de amor, numa espécie de revisão subtil e discreta do tema de Fausto.

Um coreógrafo talentoso e competente como Olga Roriz ("Paula Rêgo da dança"...) não teria a mínima dificuldade em, um vez lido o conto, extrair dele um bailado, desde logo, porque o argumento é, num certo sentido, ele mesmo, pelo excesso, pela componente surreal e especificamente supra-real já naturalmente um tema de ópera ou de bailado e, se dificuldade tivesse esse mesmo coreógrafo, seria paradoxalmente o que é representado pela poderosa e natural visualidade do texto de Alarcón que o faria, seguramente, ter de se multiplicar em soluções próprias no sentido de contornar o risco de alguma admissível redundância uma vez que, no próprio conto, já está, como digo, em termos da concepção de um bailado nele assente, praticamente tudo.

Imagem de "Pedro e Inês"


Dividindo-o por actos (para quem leu o conto de Alarcón) teríamos um primeiro acto até à partida da amada de Gil Gil para França e o encontro deste com a Morte; um segundo, incidindo sobre a ascenção de Gil Gil a médico da corte terminando com o casamento do herói com Elena; um terceiro, de algum modo, angular ou verticial na economia global da narrativa tendo em vista o desenlace, o 'denouement' da "estória" de Gil Gil e Elena mas, sobretudo, em termos de bailado, crucial do ponto de vista do desenvolvimento das ideias que aquela contém---um acto mais marcadamente reflexivo e introspectivo---lírico, num certo sentido tremendista e "fantástico" que iniciasse a "queda" dos heróis e, por fim, o último acto correspondente às páginas finais do conto e que também a verdadeira "chave" última deste, quando se percebe que todo ele decorreu, afinal, para além da vida", em plena Morte; que todas aquelas "pessoas" são, afinal, espectros e que, em última análise... a realidade não existe ou é de tal modo complexa, multímoda, labiríntica, ilusória e insondável que talvez nem nós próprios (os espectadores operando como um "espelho mágico"---como diria Manoel de Oliveira---da acção/proposta do palco; a humanidade, em geral) existamos realmente, não passando, na realidade, de cadáveres e espectros, marionetas animadas de uma completamente falsa presunção autonomia e de uma impossível ideia de liberdade, arranhando a superfície de um universo inexistente, protagonizando, de facto, o "sonho" (ou o imperscrutável desígnio) de "alguém" ou "alguma coisa" de que não conhecemos, na realidade, a identidade e/ou o propósito...



"SpellBound" de Alfred Hitchcock, imagens da sequência do sonho, concebida por Salvador Dali

A fim de se poder ter uma ideia dos aspectos mais poderosamente visuais da obra de Alarcón, passo a transcrever aqui um curtíssimo fragmento onde eles se evidenciam de forma particularmente impressiva e que serve, creio eu, de ilustração ao que atrás refiro quando falo daquilo que há já de balético e/ou operático na obra:


"Nesse instante, a Lua desapareceu, como se uma núvem tivesse vindo interpor-se entre ela e os dois jovens.
Desgraçadamente, porém, não era uma núvem!...
Era uma longa sombra negra que Gil Gil viu do banco onde estava sentado, e tocava no céu e na terra, vestindo de luto quase todo o horizonte...
Era uma figura colossal, talvez ainda maior na sua imaginação...
Era um ser terrível, envolto num longo manto escuro, e estava de pé, a seu lado, imóvel, silencioso, cobrindo-se com a sua sombra...
Gil Gil adivinhou quem era!
Ele não via a lúgubre personagem...

Elena continuava a ver a Lua."


Atente-se na prodigiosa visualidade da cena, nas fantásticas potencialidades narrativas em termos de bailado daquele aspecto interior, puramente subjectivo da "revelação" da presença da Morte, da aparência desta (da coreografia destinada a introduzir esses e outros subtis aspectos da narrativa) assim como os que teriam de ser concebidos para pôr em cena o que é já a separação simbólica dos amantes, dos quais um vê algo que o outro nem imagina, verificando-se, pois, entre eles umas ruptura, um corte que faz com que o espectador, identificando-se com Gil Gil, "passe", por assim dizer, "à frente da" heroína tragicamente ignorante do destino que a espera, a ela e ao seu apaixonado.

Este, pois, um ( não sei se posso com propriedade dizer: velho) sonho meu: o de ver convertido em bailado um dos mais cativantes e impressivos textos fantásticos que conheço.

O outro é, como disse, a sequência do "sonho/delírio" de Brás Cubas, na obra homónima de Machado.

Dada a extrema complexidade psicanalítica das incidências do sonho (muito incompletamente "descodificado" por um biógrafo de Machado, Gondim da Fonseca in "Machado de Assis e o Hipopótamo---uma biografia honesta e definitiva", Rio de Janeiro, 1968) deixo para uma 'entrada' específica deste "Diário" a reinterpretação (quasi-découpage) que dele eu próprio faço.

Adianto, todavia, desde já que aquilo que nele existe de "pesadelo freudiano" codificado, i.e. de potencialmente revelador da insegurança identitária e, volto a dizer (ou a sugerir) especificamente sexual que alguns biógrafos apontam ao criador de "Dom Casmurro" é, também, tal como sucedia, aliás, com o conto de Alarcón e, por um conjunto de motivos de natureza, em última instância, basicamente afim (a impossibilidade ou, no mínimo, a dificuldade sexual sublimada e erotizada) já todo um bailado em potência, num registo (fragmentário, surreal, beckettiano, conceptualmente tão próximo do registo conceptual, narracional e naturalmente plástico, estético de Olga Roriz) que, pessoalmente, imagino, por outro lado, como contendo fortes e mais ou menos reconhecíveis analogias com aquilo que Dali fez para Hitchcock (um autêntico bailado no 'país onírico', no fundo!) em " Spellbound"...

... ou com o que um dos coreógrafos que (juntamente com Olga Roriz e, por exemplo, claro, a definitiva Pina Bausch) mais admiro, Robert Helpmann fez sobre partitura de Arthur Bliss com "Miracle in the Gorbals", sobre um tragicamente irónico "segundo regresso de Cristo à terra" .



Robert Helpmann