Começo por dizer que não me lembro sinceramente de vê-lo jogar. Recordo-me, porém, de “conhecê-lo” perfeitamente através dos famigerados “bonecos da bola” dos [medonhos!] rebuçados de tostão, sinistra mistela de açúcar e farinha em volta da qual, dobradinhos a rigor, vinham os mágicos retratos dos nossos ídolos infantis. Devo, todavia, ter visto algum jogo com ele numa, pelo menos, das várias vezes em que acompanhei o meu pai à velha Ilha “” ou “Estância de Madeira”, o exíguo e calvo Campo Grande, onde jogavam ele, o Corona, o Contreiras, o Chico Calado, o Rogério Lantres de Carvalho—o inimitável Pipi”—além do Melão, do Julinho, os para nós famosíssimos “Diabos Vermelhos” e, a breve trecho, também do menino Zé Águas além de, para dar apenas mais um exemplo, do Raul Pascoal, que hoje [quem me havia a mim de dizer, nessa altura?!] cá vou encontrando com alguma frequência nas minhas errâncias de dono de cão zeloso e cumpridor [o dono não tanto o cão…] pelas ruas da cidade onde nasceu e que faz o favor de ser meu interlocutor ocasional, num emocionado desfiar de memórias onde, volta-não-volta, lá re/emergem as referências ao extraordinário desportivismo do agora desaparecido Espírito Santo e ao aprumo com que se comportava em campo sobretudo para com os adversários.
É, de resto, uma das razões pelas quais eu próprio sou e só posso ser “do Benfica”, o único Clube que ao que conheço que protestou um jogo ganho com um penalty senão inexistente, pelo menos, duvidoso a seu favor e cujo capitão à época o mítico Cosme Damião expulsou, um dia, por comportamento incorrecto num jogo em Espanha, um companheiro—aliás, a principal vedeta da equipa, Artur José Pereira, a primeira grande estrela futebolística nacional, que haveria de nos ser “roubado” pelos ricaços de verde, ainda hoje nossos vizinhos, numa altura em que ainda não se arrastavam pela competição, sonhando emular o… regionalíssimo Sporting de Braga—…
O Espírito Santo encarnou como ninguém esse espírito de dignidade e nobreza competitiva quando o desportivismo era ainda um valor entre nós.
Numa altura em que o Melão, outro jogador negro do Glorioso, foi com o próprio Espírito Santo, impedido, numa digressão à Madeira, de se alojar com o resto da equipa num hotel da ilha que apenas aceitava brancos, vinham-me invariavelmente as lágrimas aos olhos sempre que evocava, com o meu pai, «afrcano acidental» nascido em Moçambique mas renascido em pleno Baixo Alentejo, o aprumo exemplar do Espírito Santo, o mesmo que, uma vez, recusou festejar um golo marcado ao grande Azevedo—a jogar esse jogo com um braço ou uma omoplata [não me lembro exactamente!] fracturados, para precipitar-se, afastando os companheiros de equipa naturalmente eufóricos pelo golo, a fim de ajudar o guardião adversário a levantar-se guardião esse que, após ter voado para bola na tentativa frustrasda de evitar que ela entrasse na baliza chutada pelo Espírito Santo precisamente, havia caído sobre o braço são, tendo ficado, desse modo, impossibilitado de erguer-se por si só.
Com o Espírito Santo, ficou para todos nós, não-brancos no Portugal dos anos 50 [Espírito Santo retirou-se em 1949, quatro anos depois de eu próprio ter nascido] um pouco menos complicado sê-lo exactamente porque havia aquele espécime único de cidadão e futebolista exemplar, hábil e velocíssimo, modelo dificilmente igualável da “superioridade moral do benfiquismo” que tornou o Clube a referência desportiva perfeita em Portugal—e não só.
Viriam, depois, como é sabido, os apitos e a famigerada fruta e um universo competitivo com muitas analogias com um certo pugilismo profissional corrupto norte-americano denunciado pela literatura e pelo cinema [“Requiem For a Heavyweight” de Ralph Nelson ou “The Left Hand of God” de Dymitryk, para já não falar no soberbo “Raging Bull” de Scorcese, por exemplo] e um tempo [i] moral onde “sportsmen” íntegros como Espírito Santo não passavam já de mero anacronismo incompreensível para a maioria dos frequentadores de estádios e/ou pavilhões.